O cenário macroeconômico com inflação e juro alto tirou a liquidez do mercado e tornou mais difícil a vida de startups, que precisam captar investimentos para sobreviver. No ano passado, essas companhias levantaram US$ 4,46 bilhões em aportes ante US$ 9,8 bilhões em 2021, segundo a Distrito. A queda brutal no dinheiro vem forçando os dois lados do balcão a adotarem novos critérios na negociação desses investimentos.
Se antes os fundos de investimento – e as próprias startups – buscavam o crescimento a todo custo, agora a história é outra. A escassez de capital tornou uma necessidade que as startups tenham, desde o começo, um plano para ter as contas em dia – sem contar com aportes para continuar a trajetória de crescimento. Além de o negócio ter o produto certo para o seu mercado, os fundamentos passaram a importar mais na decisão de investimento dos fundos.
Na visão de Karina Rossi, especialista da plataforma de crowdfunding para startups SMU Investimentos, há um consenso no setor de que houve uma euforia, um exagero por parte das startups nos últimos anos. Por isso, agora os fundos e as próprias empresas estão mais comedidas em suas ações.
“Parecia que era uma corrida de quem era mais legal, com tênis e kits home office para funcionários. Pensando em todas demissões, seria melhor não ter gastado esse capital e ter mantido mais pessoal. Não que não sejam medidas importantes para engajamento, são necessárias. Mas quando chega a escassez de capital, tudo isso parece supérfluo”, afirma. Só no ano passado, foram quase 4 mil demissões nas startups “unicórnios” (avaliadas acima de US$ 1 bilhão) – e o movimento continua nesta ano, com cortes em nomes como iFood, Loft, Olist, Loggi e Neon.
A “farra” de gastos era uma forma de chamar a atenção no mercado para atrair os melhores profissionais. E, para isso, as startups do Brasil e do mundo cresciam e sobreviviam graças ao dinheiro de investidores. Ainda sem ter uma direção definida ou sem conseguir atingir o topo do segmento, as startups usavam todo o capital disponível para conquistar clientes. Ou seja, eram empresas que ficavam no vermelho e cobriam o rombo nas contas com novos aportes de fundos.
Agora, o crescimento acelerado a todo custo não é mais bem visto como era antes. O plano de negócios precisa ter clareza em relação às principais fontes de receita. “A cada transação, uma startup de crescimento muito acelerado perde dinheiro em vez de ganhar. Esse tipo de empresa ganhava investimento porque as pessoas acreditavam que a liderança de mercado viria e, com isso, melhoriam as finanças. Agora, os investidores buscam essa saúde financeira desde o princípio”, afirma Thiago Maluf, sócio do Igah Investimentos.
O maior rigor nos aportes também está presente no Iporanga Ventures, uma das primeiras investidoras da Loggi. Renato Valente, sócio do fundo, diz ter preferência por startups que têm o negócio mais “redondo”, ou seja, que já sabem qual será a fonte de receita. “Quando fazemos o primeiro cheque, olhamos se será possível construir uma empresa com ele, se será possível chegar à próxima etapa e captar mais capital ou se, talvez, demore um pouco mais para a próxima rodada e será preciso ter uma pista de capital um pouco mais longa”, afirma.
O novo contexto econômico mudou, ainda, o prazo que os fundos têm para avaliar as propostas de investimentos, que chegavam a ser de apenas uma semana – agora, há mais tempo de negociação. Na sua história, a Igah Ventures já fez 46 investimentos e tem 25 empresas investidas no portfólio. Para este ano, já fez um aporte de US$ 20 milhões na Dattos, de software de contabilidade, e analisa outros casos com mais calma do que antes.
Para Maluf, o aumento do tempo para avaliar a possibilidade de fazer investimentos e tornar-se um parceiro de negócios nas startups é positivo para todas as partes envolvidas. Nos investimentos da empresa, que são feitos considerando um horizonte de quatro a cinco anos, o prazo de uma resposta a uma proposta de aporte é entre 6 e 10 semanas, levando até quatro meses para o dinheiro estar na conta da startup.
Diogo Garcia, líder do programa de inovação Emerging Giants da consultoria KPMG, diz que a cautela maior não significa necessariamente que o capital tenha sumido do mercado, apesar de alguns investidores estarem em compasso de espera. “Esse é um momento de ajuste de mercado. As startups que se provarem, que fizeram bom trabalho, entendem quem são os clientes, têm bom modelo de negócio e boas margens, vão continuar em uma jornada de crescimento relevante. Algumas captações ficaram em stand by. Mas ainda existe dinheiro a ser investido em startups que provem seu valor”, diz.
Estrutura corporativa
Além de maior rigor financeiro, as startups agora precisam também nascer prontas para o sucesso, minimizando erros que podem custar caro para a operação. Essa é a visão de Brian Requarth, cofundador e CEO do hub para startups Latitud, que orienta empresas da América Latina sobre como desenvolver seus negócios de forma global e captar investimentos.
“O novo perfil das startups que conquistam aportes de VCs em 2023 já começa com uma estrutura corporativa correta. Esse é o primeiro alerta, e um alerta fundamental porque muitas startups só percebem isso tarde demais. Eu me incluo nisso: a minha companhia anterior, o VivaReal, perdeu US$ 100 milhões em impostos desnecessários por conta da estrutura corporativa errada. Além da perda por questões tributárias, os investidores de fato deixam de colocar dinheiro no seu negócio se você tem a estrutura corporativa errada. Ninguém vai obrigar a startup a mudar sua estrutura corporativa porque se sabe do custo que isso traz, mas é um ponto negativo e que contribui para declinar o investimento”, diz.
Requarth diz ainda que a estrutura da empresa precisa estar adequada ao potencial de crescimento dos negócios, sem estar limitada a apenas um país, como o Brasil. Em vez disso, as startups têm apostado em operações também nos Estados Unidos, sendo a mais utilizada hoje em dia é a Delaware LLC “A gente chama toda a estrutura de empresa brasileira + Delaware LLC de Delaware Tostada, justamente porque tem duas camadas, assim como um torrada com manteiga ou uma avocado toast”, afirma. Três startups que seguem o modelo citado são as fintechs Stockash e Raiz e a cleantech Planty.
Estadão apurou que fundos como Canary, Maya Capital, Norte Capital, ONEVC e 500 Startups usam a operação nos dois países como um dos critérios de investimento, assim como o próprio Latitud Fund.
O mínimo de investimentos
Para algumas startups, outro caminho é ficar tão longe quanto possível dos investidores de risco nos primeiros anos do negócios e só captar aportes quando o negócio tiver clareza sobre as fontes de receita e as contas no azul. Esse foi o caso da RecargaPay, fundada em 2009. A rodada de série A foi para a startup sair do chão. A extensão veio só cinco anos depois, em 2014. Em 2017, já com oito anos de história, veio a série B, enquanto a série C foi apenas em 2021.
Diego Escobar, diretor financeiro da RecargaPay, conta que o crescimento mais lento pode ser uma solução para empresas que começam a operar com uma estratégia de negócio bem definida. “Cabe a cada empresa saber até onde pode nadar até conseguir voltar para o seu porto-seguro. Quando for preciso crescer de forma rápida, o núcleo do negócio não pode ser prejudicado”, afirma.