Nobel de Economia e a invenção de uma nova língua

A citação do Prêmio Nobel de Economia deste ano faz menção “à invenção de novos formatos de leilões” por parte de Paul R. Milgrom e Robert B. Wilson. De fato, os mercados que desenharam geraram dezenas de bilhões de dólares de receitas a governos ao redor do mundo e, mais importante, garantiram o melhor uso para ativos de infraestrutura escassos, com enormes ganhos de bem-estar. 

Este artigo, no entanto, discute outras contribuições, também merecedoras de um Prêmio Nobel, que esses enormes intelectuais deram à teoria econômica e que serviram de fundação para a construção de mercados no mundo real. Pelo caminho, traça relações entre o mundo que inventaram e os de tantos outros gigantes da ciência lúgubre. 

Em artigo seminal, Friedrich Hayek (agraciado com o Nobel em 1974) sugeriu que preços em mercados competitivos constituíam a forma mais eficiente (isto é, menos demandante em termos de requerimentos de comunicação) de agregar informação dispersa na economia e, desta forma, sinalizar para os agentes o melhor uso de recursos escassos. 

Décadas depois, Leonid Hurwicz (premiado em 2007) provou formalmente a sugestão de Hayek. No fim dos anos 1970, no entanto, essa propriedade de preços e de mercados foi colocada em xeque teoricamente. De fato, a combinação da adoção da chamada hipótese de expectativas racionais (anos depois daria o Prêmio Nobel de Economia a Robert E. Lucas Jr.) com o modelo de equilíbrio geral com mercados competitivos (cujo estudo havia dado, anos antes, o prêmio a Kenneth J. Arrow e Sir John R. Hicks e logo em seguida daria a Gérard Debreu), então o arcabouço vigente e virtualmente único de análise econômica, parecia gerar um paradoxo: se mercados agregam toda a informação dispersa na economia e os agentes econômicos não influenciam esses preços (hipótese de mercados são competitivos), não há razão para que alguém adquira, com custo, informação. 

Mas, se ninguém adquire informação, como os preços poderiam agregá-la? Esse era o chamado paradoxo de Sanford Grossman e Joseph Stiglitz (Nobel em 2002). 

Em sua tese de doutorado, orientada por Wilson (que já havia, entre questões como divisão de risco entre grupos de pessoas e escolha social, estudado vários modelos de leilão), Milgrom esclareceu a essência do problema: a teoria de equilíbrio geral não é uma teoria de formação de preços. Para se entender como preços podem agregar informação, nos ensinou, é preciso especificar o mecanismo de formação de preço. Leilões especificam como preços são formados: define-se regras que induzem que os participantes façam seus lances e, a partir desses lances, os preços que igualam oferta a demanda são definidos. 

Milgrom mostrou que um leilão de segundo preço (que, em certo sentido, emula a hipótese de um mercado competitivo) pode agregar toda a informação dispersa e não inibe que agentes queiram investir em adquirir informação. 

Anos mais tarde, Milgrom mostrou que um leilão de segundo preço (e de maneira mais intensa um leilão inglês) mitiga(m) a chamada maldição do vencedor, identificada por Wilson quando estudou leilões de “valores comuns”. A maldição do vencedor estabelece que ganhar um leilão que tenha um componente de valor comum (isto é, que envolva um objeto para o qual todos os participantes atribuem um mesmo, mas incerto, valor – leilão de exploração de um bloco de petróleo é um exemplo: a quantidade de petróleo é, a menos de diferenças de eficiência dos exploradores, basicamente a mesma para todos, assim como o preço do petróleo) é má notícia. 

A razão é que o ganhador terá, em comparação a seus oponentes, sobrestimado o valor do objeto. Temendo a maldição do vencedor, um participante será menos agressivo em seu lance, com implicações para o leiloeiro. Num artigo seminal de 1982 com Robert J. Webber, Milgrom derivou o princípio da vinculação, que diz que leilões que “vinculem” o lance dos participantes a suas valorações gerarão lances mais agressivos (e mitigarão a maldição do vencedor). 

É o princípio da vinculação que nos permite dizer que um leilão inglês gerará mais receita que um leilão de segundo preço, que, por usa vez, gera mais receita que um leilão de primeiro preço e um leilão holandês. O artigo foi tão transformador que se imaginava que basicamente tudo a respeito de leilões havia sido dito ali. 

O segundo ato (frequente, sim, nas vidas americanas) em Teoria dos Leilões viria 11 anos depois, com o desenho dos leilões de espectro citados na premiação.

O dilema dos prisioneiros descreve uma situação na qual dois jogadores podem escolher adotar uma ação cooperativa ou não fazê-lo. Se ambos cooperarem, os ganhos dos dois, somados, é o maior possível. No entanto, não cooperar quando o oponente coopera gera o maior ganho individual. 

Assim sendo, o único resultado (“equilíbrio de Nash”) envolve ambos jogadores não cooperando e gerando o pior resultado agregado possível. O jogo captura de maneira precisa como os incentivos individuais dos agentes podem levar a resultados coletivos indesejáveis. 

Reinhard Selten (ganhador, com John F. Nash Jr. e John C. Harsanyi, do Prêmio Nobel em 1994, por contribuições em teoria dos jogos) propôs uma forma de se prever o que ocorreria numa versão em que dois jogadores jogassem o dilema dos prisioneiros um número finito de vezes. Como Sherlock Holmes sugeria, a chave era resolver o problema de trás para frente: no último período de interação, os jogadores, entendendo não haver futuro, não cooperariam entre si. 

No penúltimo período, antecipavam que o resultado no período seguinte seria de não cooperação, independentemente do que fizessem. Portanto, ali também não cooperariam. E assim, de maneira retroativa, a previsão era inequívoca: a cada instante, nenhum dos jogadores cooperaria. O problema? A evidência de experimentos laboratoriais estavam em clara contradição com essas previsões e a teoria econômica parecia estar uma vez mais numa encruzilhada. 

Seria preciso uma nova teoria de como agentes se comportam em situações com interação estratégicas? A gangue dos quatro – David M. Kreps, D. John Roberts, Wilson e Milgrom – mostrou-nos que não. A lição foi que o mundo real (onde, entre outras coisas, os experimentos se dão) é muito mais complexo do que os modelos ensinados no quadro-negro. Uma vez que os economistas incorporem essas complexidades (as relevantes para a questão econômica considerada, “bien sûr”) a seus modelos, seus resultados terão aderência empírica. 

No caso específico, adicionando um pequeno componente de informação incompleta (isto é: os jogadores não sabiam perfeitamente as preferências dos outros jogadores; o que parece razoável como descrição dos participantes de um experimento), a gangue dos quatro mostrou que os jogadores terão incentivos a construir determinada reputação e isso, por sua vez, gera nos jogos considerados exatamente os resultados vistos em laboratório. 

A força de seu trabalho à época trouxe de vez a teoria dos jogos como instrumento “mainstream” na profissão e deu origem a uma enorme área que introduz reputação a modelos econômicos e explica de cooperação em jogos repetidos um número finito de vezes a predação como forma de competição em mercados, passando por explicar o porquê banqueiros centrais não inflacionarem, países soberanos pagarem suas dívidas e o porquê de incumbentes, querendo estabelecer a reputação de agressivos, promoverem guerra de preços em certos mercados para inibir entrada em outros mercados. 

Novas aplicações de teoria dos jogos foram estudadas pela geração contemporânea da gangue dos quatro. Bengt Holmstrom, ganhador do Prêmio Nobel de 2016 com Oliver Hart, em trabalhos com Milgrom e outros autores, expandiu nosso entendimento da melhor forma de se desenhar contratos em situações nas quais provisão de incentivos é algo crítico. 

John Roberts e Milgrom, inclusive por meio de um livro-texto para alunos de “business”, ensinaram como princípios econômicos podem ser usados para gestão e desenho organizacional e como a noção de complementaridades (construída de maneira formal, por meio da matemática relevante) de insumos, atividades, talentos etc. desempenha importantíssimo papel. 

Com Lawrence Glosten, Milgrom mostrou como interação estratégica e assimetria de informação entre “market makers” e “traders” geram “spreads” “bid-ask”. Com Nancy Stokey, mostrou que, sob hipótese de conhecimento comum (amplamente utilizada em aplicações e formulada matematicamente por Robert Aumann, Prêmio Nobel em 2005), não é possível que agentes negociem por razões especulativas a menos que tenham discrepâncias de opiniões (“concordem em discordar”). 

A lista é interminável e revela o quão longe os laureados e seus contemporâneos conseguiram levar os domínios da microeconomia. O que quer e o que pode essa língua? 

Vinicius Carrasco é sócio e economista-chefe da StoneCo e professor de Economia da PUC-Rio. Este artigo se beneficiou de conversas que teve com seu amigo Marcos Lisboa, que não pode ser responsabilizado pelas confusões do autor 

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/10/23/vinicius-carrasco-o-nobel-de-economia-e-a-invencao-de-uma-nova-lingua.ghtml

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