Fornecedores sem receber fazem piquetes, fundadores fogem de cena e milhares de trabalhadores do setor de tecnologia são demitidos diante dos receios cada vez maiores dos investidores com as deficitárias startups de internet chinesas voltadas ao consumo.
Em uma tarde nublada de janeiro, uma procissão de fornecedores da varejista de alimentos Nice Tuan fizeram uma carreata e buzinaço em frente a um depósito do Alibaba na cidade de Changsha, região central da China, para exigir que o gigante do comércio eletrônico socorra a empresa. “Não estamos conseguindo receber nosso dinheiro, ninguém da Nice Tuan está negociando conosco. Ficamos sem opções, estão estamos indo atrás do Alibaba”, disse Yang Xianli, que vende grãos de girassol.
A Nice Tuan, uma startup chinesa de venda de alimentos pela internet que levantou mais de US$ 1,2 bilhão de investidores como Alibaba, DST Global e DE Shaw, é a mais recente empresa à beira da quebra, depois de uma mudança radical na política do governo de Xi Jinping para o setor de tecnologia ter levado investidores a se afastar de empresas da internet voltadas a serviços e ao consumo e a favorecer nomes tecnológicos com operações industriais ou “hard tech”, como são conhecidos.
Em 2021, as startups chinesas levantaram um volume recorde de recursos, cerca de 35% superior ao do ano anterior, segundo dados da firma de dados ITjuzi. Mas há uma bifurcação cada vez mais nítida entre os segmentos dentro do setor de tecnologia na China.
O financiamento a startups de comércio eletrônico, tecnologia de ensino e de redes sociais on-line ficou estagnado ou caiu, enquanto houve um salto nos investimentos em empresas “hard tech”, como as de semicondutores e robótica.
Huan He, da Northern Light Venture Capital, uma das principais firmas chinesas de investimento, diz que a concorrência por negócios com empresas do ramo de robótica nunca foi tão ferrenha, e que seus valores refletem isso.
“A nação quer um foco maior na indústria e no ‘hard tech’. Os investidores precisam seguir o [mesmo] rumo do país”, disse. A equipe da Northern Light que se especializava em empresas de internet voltadas ao consumo agora passou a trabalhar em nomes do varejo e do “comércio direto ao consumidor”, que busca dispensar o intermediário da cadeia produtiva e de distribuição.
O SoftBank também vem se reorientando na China, segundo o presidente do grupo japonês, Masayoshi Son. “No momento, não estamos investindo tanto em empresas voltadas ao consumo ou sensíveis a dados nas mídias [sociais]”, disse, em novembro.
A reorientação estratégica ganhou ímpeto em julho, quando as autoridades chinesas lançaram uma investigação sobre a gigante dos aplicativos de transporte Didi Chuxing, na esteira da oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) da companhia em Nova York. Semanas depois, Pequim anunciou regras que viraram de ponta-cabeça o segmento de tecnologias de ensino. Desde então, as autoridades impuseram novas normas que tornam mais difícil para empresas chinesas abrirem o capital em Nova York.
“A internet voltada ao consumo vê os Estados Unidos como o principal canal de saída [para dar retorno aos investidores iniciais]. Agora isso é algo duvidoso, especialmente para as grandes plataformas”, disse um investidor de um fundo de vários bilhões de dólares especializado em China que passou a limitar o financiamento ao segmento.
“Grandes estrategistas como Alibaba, Tencent ou fundos [de private equity] geralmente encabeçavam as grandes rodadas de expansão antes de uma IPO, mas [agora] estão recuando”, acrescentou o investidor.
O impacto da ofensiva regulatória de Pequim nas empresas de internet de consumo foi profundo. A New Oriental, líder no ensino on-line na China, demitiu 60 mil funcionários. Rivais como Gaotu Techedu, TAL Education Group, Yuanfudao e Zuoyebang, somadas, também demitiram dezenas de milhares.
Também houve forte queda nos valores em bolsa das empresas de internet cujas operações queimam muito dinheiro, o que provocou mais cortes de pessoal em empresas como o iQiyi, um site de streaming de vídeos, e no Kuaishou, um rival do TikTok.
O varejo de alimentos on-line tem sido alvo dos órgãos reguladores, preocupados em acabar com preços predatórios. Autoridades antitruste chinesas puniram cinco empresas por suas práticas de preços em 2021.
A Chengxin Technology, subsidiária de supermercados da Didi, enxugou as operações consideravelmente, enquanto a Shixianghui, financiada pela Tencent, e a startup Tongcheng Shenghuo estão perto de quebrar. A fornecedora de alimentos frescos Meicai e as firmas com ações em Nova York, Dingdong Maicai e Missfresh também encolhem operações.
Tornar-se alvo dos holofotes das autoridades intensifica a pressão sobre empresas já às voltas para tornarem-se lucrativas. “[A Didi] não tinha como arcar com as enormes perdas por mais tempo.”
Poucos meses depois de ter injetado US$ 3,8 bilhões na empresa ao lado do SoftBank e de outros investidores no primeiro semestre de 2021, a Didi se viu forçada a contabilizar baixa na maior parte de seu investimento. A Didi não quis comentar o assunto.
A Nice Tuan depara-se com um destino parecido, depois de ter queimado US$ 750 milhões que havia levantado de investidores como o Alibaba e a DST Global, de Yuri Milner, em março de 2021. A empresa não conseguiu atrair investidores adicionais e acabou deixando de pagar seus fornecedores.
Nos últimos meses, a Nice Tuan demitiu milhares de trabalhadores. Um ex- funcionário do departamento de estratégia, demitido no fim de dezembro, disse ao “Financial Times” que ainda lhe deviam o salário dos últimos dois meses de trabalho.
“Sabíamos que havia problemas, mas quando eles trocaram em dezembro [o cargo] de representante jurídico por alguém de quem nunca tínhamos ouvido falar, soubemos que estava realmente ruim”, disse. Pela lei chinesa, o representante jurídico das empresas é o responsável legal pelos erros de uma empresa.
Registros públicos mostram que Chen Ying e Wan Peng, cochefes executivos da Nice Tuan, deram a posição em subsidiárias importantes a uma terceira pessoa, Wang Wenjing, de 65 anos, em 15 de dezembro.
Uma semana depois, contas da Nice Tuan que deixaram de ser pagas levaram um tribunal de Pequim a punir Wang Wenjing restringindo seus gastos pessoais, a
primeira de uma série de ordens judiciais que também o proibiram de sair de férias, jogar golfe ou ficar em bons hotéis.
Um porta-voz da Nice Tuan, que o “FT” encontrou em um escritório vazio em Pequim, disse que a empresa ainda tinha “dinheiro […] na conta bancária” e que estava apenas “alongando […] o ciclo de pagamento”.
O porta-voz disse que alguns funcionários estavam contestando a saída e confirmou que a empresa demitiu mais de 1 mil funcionários de sua sede. Ela considerou as mudanças de representante jurídico “normais”.
“Novas políticas governamentais fizeram todo o setor apertar o cinto […] é o mesmo para grande parte do setor de internet, o governo não quer que sejamos poluídos pelo capital”, disse o porta-voz da Nice Tuan.
“Houve uma reorganização do setor de ensino. A reorganização de nosso setor é a mesma. Depois disso, pode haver um período de crescimento saudável.”
Só resta aos fornecedores torcer para que a empresa sobreviva. Yang, o comerciante de sementes de girassol, disse que lhe devem 60 mil yuans (US$ 9,4 mil).
“Tenho apenas o ensino fundamental e sei que uma dívida precisa ser paga, mesmo que sua empresa não siga adiante. Você tem que dar uma prestação de contas aos credores, uma explicação”, disse ele. “Como o chefe da Nice Tuan, formado em Harvard, não sabe disso?”