Google, Apple, Facebook e Amazon provavelmente serão afetados pelas novas regras.
Três anos atrás, a União Europeia lançou o que na época parecia ser um movimento antitruste arrojado contra o Google. A empresa foi multada em € 2,42 bilhões depois que a Comissão Europeia a acusou de “abusar do seu domínio do mercado” ao favorecer a própria plataforma de comparação de preços em seu mecanismo de busca. O Google também foi obrigado a mudar suas práticas para dar tratamento equitativo a serviços rivais.
Para muitos no setor europeu de tecnologia, porém, o impacto dessas mudanças foi mínimo. Philipp Peitsch, CEO do site de compras Idealo, com sede na Alemanha, diz que a medida pouco fez para mudar o que ele vê como conduta anticompetitiva do Google. Segundo ele, outras fontes de tráfego para a Idealo “quintuplicaram” em comparação com o Google.
“Durante vários períodos neste ano o tráfego originário do mecanismo de busca do Google foi inferior ao do ano passado – em um momento em que a demanda pela internet e pelo comércio eletrônico é maior do que nunca”, diz ele. “Foi uma solução fictícia. A fiscalização antitruste não está funcionando.”
O Google nega as acusações e insiste em que o tráfego para outros serviços desse tipo aumentou significativamente, enquanto autoridades da UE afirmam que o gigante das buscas tem feito “bons” progressos. A empresa também contesta a multa nos tribunais da UE.
Mas Peitsch não está sozinho em sua frustração. A UE está prestes a lançar uma nova investida contra as maiores empresas de tecnologia dos Estados Unidos – uma investida que terá implicações mundiais. Alarmadas com o crescente poder econômico do setor de tecnologia, as agências reguladoras da UE se apressam para agir contra os chamados “porteiros” – empresas como Google, Apple e Amazon, que administram marketplaces eletrônicos que outras empresas precisam usar e onde competem umas com as outras para vender.
A expectativa é que dentro da próxima quinzena as agências reguladoras da UE apresentem duas propostas importantes.
A lei de serviços digitais procurará esclarecer as responsabilidades que as empresas de internet têm sobre a retirada de conteúdo ilegal ou sobre produtos falsificados, e definirá exigências mais onerosas para as grandes operadoras. Também estabelecerá regras claras sobre transparência e desinformação de anúncios.
Hoje as grandes plataformas podem remover produtos ou conteúdos que não se adequam às regras de forma voluntária, com poucas desvantagens jurídicas se se recusarem a fazê-lo ou demorarem para agir.
A segunda proposta, chamada de lei de mercados digitais, buscará impor novas restrições às plataformas porteiras. As agências reguladoras acreditam que essas empresas usam o controle que têm sobre os marketplaces onde também vendem produtos e serviços próprios para prejudicar os concorrentes menores.
Essa lei estabelecerá uma lista de regras para as plataformas de forma a que fique claro que atividades são ilegais sem que as agências reguladoras tenham que iniciar longas investigações para provar que houve danos para os consumidores. Ela também demandará o poder para iniciar investigações de mercado em diferentes setores da economia onde exista a possibilidade de surgimento de novas plataformas porteiras.
As regras são deliberadamente assimétricas, no sentido de que têm como alvo os grandes grupos. Essas empresas consideradas poderosas demais terão que cumprir regulamentações mais onerosas, o que inclui a possibilidade de que sejam proibidas de tratar seus serviços melhor do que os de seus concorrentes – como no caso do Google shopping – e obrigar plataformas online como a da Amazon a compartilhar dados comerciais com rivais menores.
Dado seu tamanho e alcance, Google, Apple, Facebook e Amazon provavelmente serão afetados pelas novas regras, que ainda estão em discussão pela Comissão Europeia, segundo várias fontes informadas sobre os planos.
“Há um sentimento em Bruxelas de que as plataformas online se tornaram ‘grandes demais para se importar’”, diz Thierry Breton, comissário da UE para o mercado interno. Ele até levantou a ideia de que algumas das grandes empresas de tecnologia precisariam ser desmembradas se violassem as novas regras repetidamente.
A nova iniciativa da UE surge em um momento delicado das relações da Europa com os Estados Unidos. Por um lado, também do outro lado do Atlântico existe um anseio crescente por uma regulamentação mais rígida do setor de tecnologia. Em outubro passado, o Departamento de Justiça dos EUA acusou o Google de ser um “porteiro monopolista da internet” e de esmagar os concorrentes ao exclui-los do lucrativo negócio de buscas.
De qualquer maneira, Bruxelas será cautelosa em antagonizar os EUA justo no momento em que espera que o início do governo de Joe Biden proporcione uma oportunidade para estimular a aliança transatlântica depois da aflição dos anos Trump.
Embora alguns dos novos membros da equipe de Biden estejam ansiosos em manter a pressão sobre o setor de tecnologia, as novas regras da UE podem incitar oposição em Washington se forem vistas como um esforço para enfraquecer a indústria americana à custa das empresas europeias.
As empresas de tecnologia dos EUA provavelmente farão um forte lobby contra as propostas europeias – tanto em Bruxelas quanto em Washington. No início deste ano, a Dot Europe, uma firma de lobby que representa empresas como Google, Amazon e Apple, instou a UE a não responsabilizar legalmente seus membros por todo o conteúdo em suas plataformas.
Para alguns observadores, as novas regras da UE são importantes porque vão estabelecer um quadro para a regulamentação do setor de tecnologia que não depende de processos judiciais demorados.
“Isto é muito importante porque as empresas que se enquadram na definição de porteiro não serão capazes de produzir argumentos para justificar seu comportamento durante uma longa investigação antitruste”, disse Alec Burnside, sócio do escritório de advocacia Dechert em Bruxelas. “Em vez disso, certos comportamentos serão proibidos pela lei desde o início.”
Há um impulso por trás dos planos da UE de vários lados. Uma série de estudos feitos por figuras importantes pedem que as agências reguladoras sejam mais rígidas com os grandes grupos de tecnologia, e afirmam que novas regras são necessárias para complementar a fiscalização antitruste.
Um relatório de 2019 encomendado pela Comissão Europeia sugeriu que grandes plataformas online poderiam ser sujeitadas a exigências de prova mais elevadas. “No contexto de mercados altamente concentrados e caracterizados por fortes efeitos de rede… é preferível pecar por excesso do que por falta ao proibir condutas potencialmente anticoncorrenciais e impor ao responsável o ônus de provar que sua conduta é favorável à competitividade”, argumenta o relatório.
No Reino Unido, um relatório encomendado pelo governo e preparado por Jason Furman, principal conselheiro econômico do ex-presidente americano Barack Obama, acusou as grandes empresas de tecnologia de usar suas posições dominantes para minar a concorrência e alavancar lucros de forma injusta. A Autoridade de Concorrência e Mercados do Reino Unido quer que as gigantes da tecnologia com “status de mercado estratégico” sigam códigos de conduta adaptados para os setores em que são dominantes, assim como os “mercados adjacentes”.
Também existe pressão de dentro da UE para agir. Em novembro, o Tribunal de Contas Europeu avaliou que Bruxelas não tinha força jurídica para impedir que empresas como o Facebook e o Google destruíssem concorrentes, uma vez que o tipo de investigação que ela conduz normalmente demora demais até que qualquer ação significativa seja tomada. Para ele, a UE precisa mudar suas regras para torná- las adequadas à era digital.
Estados-membros proeminentes, como França e Holanda, já se manifestaram a favor de uma ofensiva da UE para conter as grandes plataformas. Em um parecer conjunto publicado em outubro, os países pediram aos reguladores em Bruxelas que agissem rapidamente contra as atuais plataformas “porteiras” e até as emergentes, com a possibilidade de desmembrá-las no caso de violação repetida das regras.
Funcionários da UE tiraram o pó de ferramentas antigas que já tinham à disposição para desencadear uma ação mais rápida. Em outubro do ano passado, Bruxelas ordenou que a fabricante americana de chips Broadcom suspendesse acordos exclusivos com seis fabricantes de televisores e modems enquanto investigava se os contratos constituíam comportamento anticompetitivo. Essa foi a primeira vez em quase duas décadas que a UE aplicou medidas provisórias, que têm o poder de parar comportamentos sob suspeita de serem anticoncorrenciais antes que seja tarde demais. Aproximadamente um ano depois, a UE e a empresa chegaram a um acordo.
Mas as iniciativas de uso dos poderes antitruste nem sempre correm tão bem. O Google, por exemplo, ainda contesta três multas separadas em casos que estão na Justiça há anos. Seus rivais afirmam que isso não é aceitável e o Google deixa o tempo correr enquanto se safa com o que consideram um comportamento desleal.
Os reguladores querem ter os novos poderes para apresentar acusações de monopólio em questão de meses, não anos. “Você poderá contar o número de meses que leva para realizar uma investigação com uma única mão”, disse um funcionário da UE com conhecimento direto das discussões.
Margrethe Vestager, vice-presidente executiva da UE para Concorrência e Política Digital, já reclamou sobre o tempo que demora um processo antitruste. “É doloroso que o dano em um mercado digital possa acontecer muito rápido, mas a recuperação desse mercado possa ser muito, muito difícil”, disse Vestager recentemente ao “Financial Times”. “É importante conseguir uma regulamentação que ajude a dizer daqui para a frente: ‘estas são as coisas que você pode fazer e estas são as coisas que você não pode fazer.’”
Apesar do ímpeto crescente por trás da ofensiva para regulamentar a ação das grandes empresas de tecnologia, há vários desafios que podem atrapalhar esse esforço. Primeiro, o setor vai lutar fortemente. Em outubro passado, um documento interno vazado revelou que o Google planejava uma campanha agressiva contra Breton, que já se mostrara favorável ao desmembramento de empresas em circunstâncias extremas.
No documento interno, o Google delineou planos para “aumentar a resistência” contra Breton, com a mobilização do governo dos EUA contra ele, enquanto o gigante das buscas buscava “redefinir a narrativa” em torno das próximas regulamentações.
No fim, o presidente-executivo do Google, Sundar Pichai, pediu desculpas a Breton e disse que essas táticas não foram sancionadas por ele e não representavam o Google. Ainda assim, o documento, segundo especialistas em lobby, oferece um vislumbre da abordagem que alguns grupos de tecnologia estão dispostos a adotar para se opor aos esforços da UE para regulá-los.
Provavelmente o setor de tecnologia argumentará que a UE pretende fazer coisas demais com as novas regulamentações. Thomas Boué, que dirige a política para Europa, Oriente Médio e África para a Business Software Alliance (BSA), um grande grupo de lobby que representa grandes empresas de software como IBM, Microsoft e Adobe, diz: “Garantir uma concorrência justa faz muito sentido. Mas quais são as regras? Tudo parece bastante amplo e inatingível.”
Ele acrescenta que as novas regras onerosas correm o risco de estrangular os pequenos operadores. “Quanto mais regras você tem, mais complicado isso fica, especialmente para as pequenas e médias empresas.”
Em segundo lugar, a UE se arrisca a se tornar sua própria inimiga à medida que as divergências sobre o âmbito da nova legislação aumentam. Alguns querem que os critérios – que são tanto qualitativos como quantitativos – atinjam apenas as maiores plataformas, ou seja, Google, Apple, Facebook e Amazon, enquanto outros querem critérios mais flexíveis que também teriam impacto sobre até 20 empresas, entre elas a Airbnb e a Booking.com.
Em Bruxelas também há tensões entre Vestager, responsável pela área de tecnologia digital, e Breton, que foi nomeado para a Comissão Europeia em dezembro passado. Nominalmente, Vestager está dois níveis acima na hierarquia, mas Breton tem sido o centro das atenções com relação à agenda digital, o que leva a tensões sobre quem lidera a iniciativa contra as grandes empresas de tecnologia.
“Existe o risco de que tudo isso atole por causa de uma multiplicidade de objetivos e de uma disputa territorial sobre quem fica com a jurisdição de uma ferramenta específica de política”, diz Nicholas Levy, um parceiro de concorrência da Cleary Gottlieb, cuja empresa representou o Google e outros grandes da tecnologia.
Mas mesmo que a UE chegue a um consenso interno sobre o projeto de lei, ela precisa levar esses planos ao Conselho de Ministros e ao Parlamento Europeu para debate. Críticos dizem que a legislação corre o risco de ser diluída e no fim não terá a força necessária para ser eficaz.
Eva Maydell, uma eurodeputada búlgara de centro-direita que estará diretamente envolvida nas discussões quando o projeto de lei chegar ao Parlamento Europeu, diz que brigas políticas podem levar a novas regras “ruins”.
“O consenso nunca é fácil”, diz ela. “Tendo em mente como a Big Tech foi usada para influenciar eleições e como o Brexit aconteceu, pode-se pensar que isso chega tarde demais e alguns eurodeputados vão querer legislar o mais rápido possível. Mas o risco é colocar uma legislação ruim em vigor.”
Ela diz que, apesar da necessidade de regulamentação, as tentativas de restringir o poder dos grandes grupos de tecnologia com a nova legislação “não darão origem automaticamente” a uma alternativa europeia para empresas como o Google. “Essa é uma ilusão perigosa.”
Philip Marsden, professor do College of Europe em Bruges, também alerta que ir atrás das grandes empresas pode ter consequências indesejadas para as pequenas dos mercados digitais. Para ele, as novas regras podem “algemar” a capacidade de inovação das grandes plataformas, o que, por sua vez, pode prejudicar aqueles que procuram estar nessas plataformas.
“Algumas pequenas empresas estão muito gratas por entrar na Apple e na Amazon, porque elas obtêm um efeito halo, conseguem alcance mundial”, disse Marsden, que foi um dos autores do relatório Furman do Reino Unido. “Elas só precisam ter cuidado com quem escolhem como seu salvador – quanto controle sobre suas oportunidades de negócios elas cedem às gigantes da tecnologia.”
Apesar de todos os desafios e da frustração de que os processos avançam muito devagar, Peitsch, da Idealo, ainda tem esperança de que a regulamentação possa começar a dar igualdade de condições para todos.
“Não existe um concorrente verdadeiro que possa chegar até as grandes da tecnologia”, diz ele, referindo-se à necessidade de ter uma regulamentação que continue a permitir a inovação.
E acrescenta: “O consumidor da UE ainda está aqui, a Europa ainda é um mercado importante. Não acredito que seja tarde demais.”