Oportunidades e problemas, muitas vezes não têm diferença entre si. É o que acontece neste momento com os Estados Unidos e a Europa.
A Comissão Europeia (CE) quer aproveitar a oportunidade, “daquelas que surgem uma vez a cada geração”, de reconfigurar o relacionamento entre os dois lados do Atlântico, agora que Donald Trump, está de saída. O governo do presidente eleito Joe Biden, por sua vez, terá grande interesse em ver a parceria com a Europa no cerne da aliança revigorada de democracias liberais que representará uma alternativa política e econômica à China.
Ainda assim, os EUA e os 27 países da União Europeia continuam a se digladiar quanto à regulamentação do setor de tecnologia, do comércio exterior e da tributação das empresas. Bruxelas está correta em achar que é hora de uma reconfiguração. Para que se alcance isso, porém, será necessário pensar essas questões de forma conjunta, em vez de compartimentalizada.
Comecemos pela regulamentação da tecnologia. A CE estuda uma nova lei que confrontaria as gigantes tecnológicas mais enraizadas no mercado, como Facebook e Google. A ideia é corrigir as falhas da atual legislação antitruste, uma vez que a atual política de concorrência, com foco nos preços ao consumidor, não foi elaborada pensando na era do comércio digital. O processo do Departamento de Justiça dos EUA contra o Google pode começar a mudar isso, mas levará anos para chegar ao fim.
As propostas da CE, que ainda estariam sujeitas à aprovação dos governos da UE, definiriam o papel e as responsabilidades dos chamados “guardiões” de plataformas digitais. Elas os obrigariam a tornar suas plataformas e sistemas mais abertos e interoperacionais, sujeitando-os a auditorias dos algoritmos e à imposição de penas para reincidentes, como a venda forçada de unidades.
O Vale do Silício já faz forte lobby contra as propostas. As empresas contam com a chegada do governo Biden, que incluirá vários nomes favoráveis ao setor de tecnologia dos tempos de Barack Obama na Casa Branca, para fazer frente à Europa. Não deveriam. Um dos riscos para o novo governo é ser visto como demasiado afável com a concentração de poder empresarial. Basta ver as vozes na esquerda que já se elevam contra alguns indicados de Biden com histórico em firmas de private equity.
As indicações individuais deveriam ser julgadas por seus próprios méritos. Se não deixássemos ninguém dos setores de finanças ou de tecnologia entrar no novo governo, ficaríamos mais pobres com isso. Vejamos o caso de Gary Gensler, ex- executivo do Goldman Sachs, hoje principal assessor de Biden sobre os mercados financeiros. Ele conseguiu fazer uma limpeza geral nos negócios com derivativos na Comissão Reguladora de Operações a Futuro com Commodities (CFTC) durante os anos Obama.
Dito isso, este é um momento crucial para o novo presidente sinalizar como pretende controlar (ou não) as “Big Tech” enquanto setor. A regulamentação europeia não é perfeita, mas é muito melhor do que a atual dos EUA (com exceção da Califórnia), o que não quer dizer muito.
Cada lado precisa chegar a um rápido acordo sobre como regulamentar o fluxo de dados entre fronteiras, tendo em vista que o comércio digital é o único tipo que está em expansão. As propostas europeias se sobrepõem com o caso antitruste do Departamento de Justiça dos EUA, já que os dois lados abordam a forma como as grandes plataformas podem “aprisionar” os clientes para que escolham seus produtos e serviços, argumento que o Google contesta. Esse ponto deveria ser o início de uma nova abordagem transatlântica para coibir o poder monopolista do setor tecnológico, que só fez crescer durante a pandemia.
Também poderia ser parte da resposta do Ocidente ao Estado de vigilância digital da China. Faria perfeito sentido para os EUA e a UE, valendo-se de equipamentos de produção local de empresas como Qualcomm, Nokia e Ericsson, criarem um conjunto compartilhado de padrões para a 5G e a internet das coisas, duas frentes que deverão aumentar maciçamente a profundidade e alcance dos dados digitais nos próximos anos. A China planeja estar livre da necessidade de tecnologia e de cadeias de produção estrangeiras a partir de 2035. É hora de EUA e Europa criarem sua própria aliança digital.
É necessário que seja uma aliança diversa. À medida que passarmos da internet de consumo para a internet industrial, a Europa, como grande produtora de aparelhos potencialmente “inteligentes”, como automóveis e produtos da linha branca, tem muito a ganhar – mas também a perder. Por exemplo, sem a exigência de compartilhamento de dados e de portabilidade que está no cerne das novas propostas da UE, seria fácil imaginar a divisão Nest, do Google, ficando dona de grande parte dos dados gerados por uma máquina de lavar alemã ou uma geladeira francesa.
Embora as novas regras estejam mais inseridas na internet do consumidor, as autoridades da UE vêm levando em consideração a internet das coisas e planejam apresentar em meados de 2021 um relatório sobre esse setor e sua relação com o consumidor. Empresas europeias, como a Siemens e a SAP, estão em vantagem no que se refere à internet industrial, de relações de empresa com empresa.
Eu adoraria ver que qualquer futura solução sobre a competição digital inclua bancos de dados públicos, nos quais dados industriais e pessoais, tornados anônimos, sejam compartilhados e supervisionados de forma independente. Seria uma forma de garantir que empresas de todos os tamanhos, assim como analistas e acadêmicos, tenha acesso igual aos dados.
Tão bem-vindo quanto seria um acordo entre os dois lados do Atlântico sobre a tributação dos que usarem os dados – sejam plataformas, firmas de tecnologia de serviços financeiros ou fabricantes franceses de bolsa de luxo. O setor público precisa de arrecadação. E o governo Biden não pode se dar ao luxo de ser tão favorável ao Vale do Silício como o governo democrata anterior foi.
A percepção de que os democratas se venderam para os interesses das empresas é um dos motivos pelos quais tivemos Trump. Reconfigurar a confiança no setor público também precisa ser um objetivo final de qualquer novo relacionamento transatlântico.
Rana Foroohar é colunista do Financial Times
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/esforco-conjunto-para-domar-big-techs.ghtml