Convenções expõem os EUA rachados em visões de mundo inconciliáveis

Michelle Obama gentilmente enterrou a visão de mundo anterior de seu marido nesta semana, ao pronunciar outras “verdades duras” aos EUA. “Vivemos numa nação profundamente dividida”, disse, na abertura da convenção do Partido Democrata. “Se vocês acham que as coisas não podem piorar, acreditem, elas podem.” 

Barack Obama, é claro, lançou sua carreira nacional com base na premissa oposta, em outra convenção realizada há meia geração. “Não existe uma América esquerdista e uma América conservadora”, disse Obama em 2004. “Há os Estados Unidos da América.” 

Essas palavras soam inocentes hoje. As convenções deste ano parecem estar acontecendo em outro país, ou até em nações separadas. A convenção virtual democrata descreve um EUA colorido que acabará com as injustiças históricas. 

Um país negro, branco, pardo, gay, transgênero, com necessidades especiais e intencionalmente urbano. A convenção republicana, que começa na segunda-feira, terá aparência predominantemente branca, suburbana, provinciana e quase que exclusivamente heterossexual. E prometerá restaurar a situação histórica a uma época anterior ao politicamente correto. 

Alguns comparam a política americana atual ao clima de 1860, antes da guerra civil. As convenções deste ano estão só atiçando esses temores. Elas oferecem planos visuais de campos hostis, que não se parecem um com o outro nem consideram o outro benigno. 

Isso ainda era possível quando Obama ascendia e brincava que as eleições nos EUA eram uma escolha “Pepsi ou Coca-Cola”. O desprezo mútuo não havia tomado conta da rivalidade partidária. As acusações de hoje, de avanço do fascismo, de um lado, e de antiamericanismo ateu, do outro, são o tipo de epítetos que soldados trocam quando engatilham seus rifles. É o vocabulário da luta de soma zero. 

A convenção republicana será uma maratona de trolagem do esquerdismo nos EUA. Entre os oradores estão Mark e Patricia McCloskey, casal do Missouri que ganhou notoriedade neste verão americano ao sair em frente de casa apontando um rifle semiautomático e uma pistola para manifestantes do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam). Donald Trump disse que Joe Biden quer “confiscar as armas dos cidadãos americanos cumpridores da lei” e “proteger criminosos”. 

Andrew Pollack, pai de uma garota morta no massacre em uma escola de Parkland, na Flórida, em 2018, também falará. Ele diz que sua filha estaria viva se seus professores tivessem permissão para andar armados. Outros incluem a viúva de um policial, um ativista antiaborto e um estudante adolescente falsamente acusado de ter iniciado uma briga com um ativista indígena americano (o que aconteceu foi o contrário). 

A fila de oradores de Trump não pretende convencer. A função deles é provocar. A esquerda certamente morderá a isca. Ele ainda não encontrou um slogan para substituir o seu “Make America Greta Again” (torne os EUA grande novamente), de 2016. A frase “Keep America Great” (mantenha os EUA grande” foi silenciosamente abandonada depois que a pandemia tomou conta dos EUA. 

Mas seu tom está a milhões de quilômetros do “Morning in America” (manhã nos EUA) de Ronald Reagan – a penúltima vez que um republicano foi reeleito. Também está muito distante do lema de George W. Bush, “A safer world and a more hopeful America” (“Um mundo mais seguro e um EUA mais esperançoso), de 2004 – última vez que um republicano no cargo obteve o segundo mandato. 

A intenção de Reagan era mostrar que os democratas levariam os EUA de volta à estagflação da década de 70. A de Bush era mostrar que os democratas seriam fracos na guerra ao terrorismo. As campanhas podem ter retratado os democratas como desorientados ou incompetentes. Mas eles não eram vistos como uma força satânica. 

É assim que Trump descreve o que está em jogo em 2020: “Estamos em uma luta pela sobrevivência da nossa nação e da própria civilização”. É exatamente como os democratas se sentem com a possibilidade de outro mandato para Trump. Não é o tipo de eleição que deverá terminar com o fechamento das urnas. 

Então Michelle Obama está certa ao dizer que as coisas podem piorar muito? Infelizmente ela está bem mais perto da verdade hoje do que seu marido estava. Barack Obama falou sobre um mundo em que os americanos podiam discordar uns dos outros sem serem hostilizados, onde o que os unia era muito maior do que o que os dividia. Trump o fez mudar de ideia. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/08/21/convencoes-expoem-os-eua-rachados-em-visoes-de-mundo-inconciliaveis.ghtml

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