Conheça quem avisou a Apple sobre os riscos na China

Doug Guthrie passou o ano de 1994 pedalando uma bicicleta sem marcha entre fábricas de Xangai para escrever uma dissertação sobre a indústria chinesa. Anos depois, ele se tornou um dos principais especialistas na virada da China para o capitalismo e ajudou empresas a se aventurarem no Oriente. Duas décadas depois, em 2014, a Apple o contratou para ajudá-la a navegar nesse mercado, talvez o mais importante para a empresa. Na época, ele estava preocupado com a nova direção da China.

O novo líder da China, Xi Jinping, estava se aproximando de empresas ocidentais para fortalecer seu controle do país. Guthrie percebeu que poucas empresas seriam alvos maiores, ou mais importantes, do que a Apple. A empresa montava na China quase todos os dispositivos que produzia e fez da região seu segundo maior mercado de vendas.

Então Guthrie começou a frequentar instalações da Apple municiado com um show de slides e uma palestra para soar um alarme. A empresa, afirmava ele, não tinha nenhum plano B. “Eu chegava nos diretores e dizia, ‘Vocês entendem quem é Xi Jinping? Vocês estão sabendo do que acontece por lá?”, afirmou Guthrie em uma entrevista. “Essa era minha principal mensagem.”

Seus alertas se provaram proféticos. A China se voltou para o nacionalismo e o autoritarismo sob Xi, e empresas americanas como Apple, Nike e a Associação Nacional de Basquete (NBA) estão diante de um dilema. Enquanto fazer negócios na China continua, com frequência, uma atividade lucrativa, mantê-los também exige cada vez mais concessões indigestas.

Essa tendência levanta a possibilidade de que, em vez de dar poder para o povo chinês, o investimento americano deu poder ao Partido Comunista Chinês.

“Sempre foi difícil para empresas do Ocidente fazer negócios na China, mas esses desafios mudaram de muitas maneiras”, afirmou Samm Sacks, especialista em China da New America Foundation, um centro de pesquisas apartidário que presta consultoria a empresas americanas. “O Partido Comunista está firme no poder, e tanto empresas ocidentais quanto empresas chinesas do setor privado sofrem ataques.”

A trajetória da carreira de Guthrie e a evolução de sua visão a respeito da China contam a história da complicada dança da indústria ocidental com o país ao longo das três décadas mais recentes. Guthrie e muitos executivos, políticos e acadêmicos apostavam que o investimento do Ocidente na China levaria o país a abrir sua sociedade. Agora é evidente que eles erraram o cálculo.

“Estávamos errados”, afirmou Guthrie. “O curinga era Xi Jinping.”

Nos anos recentes, a China tirou do ar no país o site do Marriott, depois de a empresa listar Tibete e Taiwan como países independentes em uma pesquisa sobre clientes. Pequim suspendeu assinaturas ao LinkedIn após o site falhar em censurar conteúdo político suficiente. E o Partido Comunista chamou um boicote a marcas de roupas ocidentais que criticaram práticas de trabalho forçado em Xinjiang, uma região da China onde o governo reprime o povo uigur, a minoria muçulmana que habita o país.

A Apple, mais do que qualquer outra empresa, é suscetível à linha mais dura do governo. Como resultado, nos anos recentes, a empresa abriu concessões para a China que contrariam valores que os executivos da empresa colocam no centro de sua marca. Para apaziguar autoridades e manter seu negócio global funcionando, a Apple colocou os dados de seus clientes chineses em risco e deu auxílio à vasta operação de censura do governo chinês, segundo noticiou The New York Times no mês passado.

A empresa afirmou que segue as leis da China e faz tudo o que ao seu alcance para manter os dados de seus clientes seguros.

“Nunca comprometemos a segurança dos nossos usuário em relação aos seus dados na China nem em qualquer outro lugar onde operamos”, afirmou um porta-voz da Apple.

Ele acrescentou que Guthrie foi um funcionário de nível médio, que não determinou políticas na Apple.

A obsessão de Guthrie em relação à China começou em 1989. Ele cursava o segundo ano de economia e aprendia mandarim na Universidade de Chicago quando soldados chineses mataram centenas de ativistas pró-democracia na Praça Tiananmen, em Pequim. Ele afirmou que, imediatamente “fui capturado pela ideia de China”.

Ele trancou a faculdade, pegou dinheiro emprestado com os avós e passou o ano seguinte em Taiwan. Ciclista convicto, ele treinava com o time nacional de ciclismo de manhã e aprendia mandarim e lecionava inglês de tarde.

Após se graduar no doutorado da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e escrever um livro a respeito da eclosão do capitalismo na China – “Dragon in a Three-Piece Suit” (O dragão de terno) – ele passou a lecionar na Universidade de Nova York, em 1997. Ele dava palestras a respeito do potencial econômico da China, e empresas lhe pediam conselhos.

Na época, a China estava fazendo a transição de fabricante de brinquedos e tênis para fabricante de automóveis e computadores. O governo com frequência exigia que empresas estrangeiras compartilhassem tecnologia com empresas estatais, em troca de acesso aos trabalhadores e consumidores chineses. Para impedir isso, Guthrie e outros fizeram pressão pela inclusão da China na Organização Mundial do Comércio, que bania esse tipo de chantagem. Em 2001, a entidade aceitou a China.

Naquele mesmo ano, a Apple começou a produzir no país. A operação começou pequena, mas os executivos da empresa rapidamente perceberam o potencial.

Em 2004, a Apple decidiu expandir sua presença na China com uma fábrica para produzir iPods, que estavam entrando na moda. Em uma viagem para definir a localização das novas instalações, o diretor da empresa parceira da Apple apontou para uma pequena montanha e disse a dois executivos da Apple que a fábrica seria construída lá, de acordo com um dos executivos. Os executivos ficaram confusos, pois a fábrica deveria estar pronta para operar dali a cerca de seis meses.

Menos de um ano depois, os executivos retornaram à China. A montanha havia desaparecido, e a fábrica estava operando, afirmou o executivo. O governo chinês havia movido a montanha para a Apple.

Ao longo das duas décadas seguintes, o Pequim gastaria bilhões de dólares para ajudar a criar a cadeia de fornecimento da Apple, pavimentando estradas, recrutando trabalhadores e construindo fábricas, usinas de energia e alojamentos para funcionários. A Apple atualmente fabrica quase todos seus iPhones, iPads e computadores na China.

Em 2014, pouco após Guthrie deixar o cargo de diretor da faculdade de administração da Universidade George Washington, a Apple o contratou para ensinar seus gerentes e aconselhar seus executivos a respeito da China. Ele também conduziu pesquisas, e seu primeiro projeto foi a cadeia de fornecimento da empresa. Guthrie, agora com 52 anos, saiu da Apple em 2019 e leciona na Faculdade de Gerenciamento Global Thunderbird da Universidade Estadual do Arizona.

Quando começou a trabalhar na Apple, afirmou Guthrie, os executivos da empresa sabiam que dependiam demais da China e queriam diversificar. Índia e Vietnã eram os principais candidatos, mas Guthrie concluiu que nenhum dos países era um substituto viável.

O governo do Vietnã cooperava, mas o país simplesmente não possuía trabalhadores suficientes, afirmou ele. A Índia tinha as pessoas, mas a burocracia do país complicava a construção de infraestrutura e fábricas. Além dessas questões, a maioria dos fornecedores de parafusos, placas de circuitos e outros componentes dos produtos Apple já se concentravam na China.

A Apple ainda investiu na Índia e o Vietnã nos anos recentes, incluindo por meio da construção de uma fábrica menor para montagem de iPhones na Índia, mas Tim Cook, o presidente da empresa, afirmou publicamente que sua cadeia de fornecimento permanece centrada na China.

Para Guthrie, esse posicionamento deixou a Apple vulnerável, especialmente em um momento em que o novo líder da China procurava maneira para exercer sua influência sobre empresas americanas no país. Em 2014, uma nova lei trabalhista passou a vigorar, limitando a quantidade de trabalhadores temporários a 10% da folha. A Apple e seus fornecedores violavam a nova regra.

A Apple continuou a se atracar com exigências do governo. Em algumas ocasiões, conseguiu resistir com sucesso. Em um determinado momento, o governo chinês solicitou o código-fonte por trás das senhas de segurança dos iPhones, de acordo com um ex-executivo da Apple a par da solicitação.

Para atender ao governo chinês, a Apple teria de criar as chamadas “portas dos fundos”, para que as autoridades chinesas pudessem contornar a segurança do iPhone, pedido similar ao que o FBI fez 2016 — e a Apple rejeitou a solicitação. Na China, a Apple também recusou o pedido e convenceu Pequim que o governo não precisava desses dados, de acordo com o executivo.

Para medir o sucesso de seu lobby, executivos da Apple olhavam para os índices anuais de responsabilidade social corporativa determinados pelo governo, uma projeção da visão do Partido Comunista a respeito das empresas. A Apple lutou anos para ter boa colocação.

Antes da divulgação dos índices, em 2017, a Apple publicou um relatório que promovia as contribuições da empresa na China. O relatório foi resultado de uma colaboração entre vários departamentos da Apple, e o elogio do governo ao material foi celebrado dentro da empresa, de acordo com registros da Apple analisados pelo Times.

A pontuação da Apple melhorou em ritmo constante. De 2016 a 2020, sua colocação entre as empresas com presença na China foi de 141 a 30.

A Apple nem sempre conseguiu resistir às exigências de Pequim. Ao longo desse período, Cook concordou em armazenar dados privados de seus clientes chineses — assim como as chaves digitais para acessar esses dados — em servidores de computador mantidos e operados pelo governo chinês.

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