Como a Netflix recupera o terreno perdido

A equipe de comando da Netflix parecia abalada. A impressionante sequência de expansão de 10 anos que a havia transformado em uma queridinha de Wall Street chegou a um fim abrupto na primavera de 2022, com a revelação de que a empresa estava perdendo centenas de milhares de assinantes.

As guerras de streaming estavam a todo vapor, com o Disney+ e outros serviços lançados pelos estúdios tradicionais de Hollywood tentando derrubar a Netflix. Falando a investidores atônitos em uma videochamada em 19 de abril de 2022, o cofundador da Netflix, Reed Hastings, começou a listar iniciativas para reverter a queda.

A Netflix começaria a limitar os clientes que compartilhavam suas senhas com amigos ou parentes, uma ideia que Hastings havia se oposto no passado. Outra proposta que Hastings havia rejeitado há muito tempo – publicidade – agora estava sendo considerada.

Para alguns, parecia que Hastings estava jogando ideias ao acaso, na esperança de que alguma delas funcionasse. As ações despencaram, marcando o início do que ficou conhecido como a “Grande Correção da Netflix”.

Mas, em vez de ser a ruína que muitos na velha guarda de Hollywood esperavam, marcou o início de uma mudança que expandiu a liderança da Netflix sobre as empresas tradicionais de entretenimento, que ainda lutam para lucrar com o negócio após investir bilhões em streaming.

Desde que lançou o controle das senhas em maio de 2023, a Netflix adicionou 45 milhões de assinantes pagantes. O preço de suas ações subiu mais de 300% desde a baixa pós-correção, atingindo recentemente novas máximas históricas [a alta supera 130% em 5 anos].

Tal recuperação estava longe de ser garantida em 2022. Mas, desde então, a Netflix lançou um negócio de publicidade do zero, investiu em sua divisão nascente de videogames e expandiu suas “experiências” ao vivo em torno de programas populares como Bridgerton, Round 6 e Stranger Things. A empresa até começou a se aventurar em esportes ao vivo.

“É simplesmente uma estratégia incrível”, diz Jessica Reif Ehrlich, uma veterana analista de mídia do Bank of America. Ela observa que as novas iniciativas começaram todas enquanto a Netflix passava por uma grande mudança de gestão.

Hastings se aposentou como CEO em 2023 e foi substituído por um protegido, Greg Peters, que divide o cargo com Ted Sarandos. “Esta deve ser a transição mais suave de qualquer equipe de gestão de todos os tempos”, acrescenta Ehrlich. “Não houve nem um soluço.”

Enquanto a Netflix recuperava grande parte de sua confiança, os grupos tradicionais de Hollywood estavam atolados em uma crise. A correção da Netflix marcou o fim da paciência dos investidores com as perdas no streaming, e a Disney é o único dos grupos de entretenimento que atualmente está ganhando com esse negócio, após se tornar lucrativa neste verão.

A indústria cinematográfica está enfrentando outro ano difícil, o que levantou preocupações sobre se o número de ingressos vendidos nos cinemas voltará a ser como antes da pandemia. A televisão a cabo – outrora uma geradora prodigiosa de fluxo de caixa – está em profundo declínio, e muitos duvidam que o streaming substituirá seu poder de lucratividade.

Essas pressões contribuíram para a decisão de Shari Redstone, neste verão, de vender a Paramount, uma empresa que sua família controlou por décadas. Quase ao mesmo tempo, a analista Ehrlich, do Bank of America, tomou a medida incomum de implorar à gestão da Warner Bros. Discovery para explorar opções estratégicas, declarando que sua “atual composição como empresa pública não está funcionando”.

Esses problemas afetaram a comunidade criativa de Hollywood na forma de cortes de empregos e orçamentos reduzidos de produção, enquanto a recuperação que muitos esperavam após as greves do ano passado, de atores e roteiristas, não se materializou.

Um veterano escritor e produtor de TV confirma o clima sombrio. “Não há um roteirista nesta cidade que pense que sua carreira está indo bem”, diz ele.

Mas o poder da Netflix está aumentando em Hollywood. Sarandos é presidente do Museu da Academia de Artes Cinematográficas e supervisionou a recente renovação de US$ 70 milhões do histórico Grauman’s Egyptian Theatre, na Hollywood Boulevard. Sua esposa, Nicole Avant, é amiga de longa data da candidata democrata à presidência, Kamala Harris. Em um gesto de poder à moda antiga, a Netflix até comprou todos os outdoors ao longo da Strip, na Sunset Boulevard.

Alguns em Hollywood estão furiosos com a empresa por mudar radicalmente a economia do negócio de entretenimento. Membros votantes da Academia continuam ressentidos pelo fato de a Netflix não dar a seus filmes concorrentes ao Oscar uma ampla exibição,

preferindo exibições limitadas em cinemas selecionados apenas pelo tempo mínimo exigido para se qualificar à premiação.

“O desprezo pela Netflix é além de tudo que já vi”, diz um veterano de Hollywood que ocupou altos cargos em grandes empresas de entretenimento. “Eles eliminaram a participação financeira de cada artista no mundo. Eles dominam e controlam tudo, e ninguém chega perto.” Ele acrescenta: “A cidade está sangrando agora. Sangrando.”

Pode ter parecido que Hastings estava improvisando quando fez seus anúncios sobre o compartilhamento de senhas e a venda de publicidade. Mas, na realidade, ele e outros altos gerentes já vinham discutindo essas ideias há anos, segundo funcionários atuais e antigos. Para colocar essas ideias em prática, Hastings recorreu a Peters, o diretor de operações na época.

Assim como Hastings, Peters veio de uma formação em tecnologia. Sua mãe era programadora na IBM e garantiu que ele aprendesse a programar ao mesmo tempo em que aprendia a ler e a escrever. Antes de ingressar na Netflix em 2008, Peters havia trabalhado para a Tivo e a Red Hat Network.

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/09/18/como-a-netflix-recupera-o-terreno-perdido.ghtml

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