Como a chinesa Shein atraiu jovens e superou a Zara nos EUA

O tempo parecia não estar do lado de Chris Xu quando ele decidiu se jogar no implacável mundo do empreendedorismo chinês. Logo quando renunciou a seu emprego na área de marketing e criou uma varejista on-line de moda, a crise financeira de 2008 surpreendeu o mundo. 

Ainda assim, passados pouco mais de 12 anos, a Shein, empresa fundada por ele, conseguiu arrebatar mais de 25% do mercado da chamada moda rápida nos Estados Unidos e seu rápido crescimento ameaça desestabilizar nomes globais consolidados, como a espanhola Inditex, dona da Zara, e a sueca H&M. 

A empresa foi erigida em torno do modelo de “fast fashion”, inventado pela Zara e seguido por outros. A Shein, porém, por meio da automação, da inteligência artificial e de uma cadeia de fornecimento bem treinada, encontrou um caminho de tornar esse modelo ainda mais rápido, e também mais barato. 

Os críticos da empresa dizem que seu modelo de negócios depende de brechas tributárias, de sua interpretação maleável das exigências de propriedade intelectual e de uma escassa consideração por questões de responsabilidade social e de governança. “Eu acho que ela [a Shein] deveria ser fechada”, diz o executivo-chefe de uma grande varejista de moda. 

Os jovens consumidores, por sua vez, parecem pouco se importar com tudo isso, de forma que os baixíssimos preços da Shein e seu crescente predomínio nos aplicativos de celular e nas redes sociais tão usados por essa faixa etária começam a ser motivo de preocupação nas salas das diretorias de empresas ocidentais. 

Nos primeiros nove meses de 2021, seu aplicativo de comércio eletrônico foi o mais baixado, atrás apenas do da Amazon, e os índices de envolvimento dos usuários do TikTok com a Shein foram notavelmente maiores que os das rivais. 

Apesar da rápida ascensão, há pouca informações de conhecimento público sobre a empresa ou seu enigmático fundador, além da mudança de nome em 2015, de SheInside para Shein, e de que ele começou a vida comercial vendendo artigos para exportação feitos na China, desde óculos escuros a vestidos de noiva, diretamente a clientes pessoa física nos Estados Unidos. 

A Shein se tornou uma das poucas marcas chinesas da área de consumo a conseguir irromper nos mercados americano e europeu. O nível de competitividade da companhia também coloca em dúvida a ideia de que a era da manufatura baratíssima da China estaria acabada. 

 “Não surgimos do nada”, diz George Chiao, chefe de operações da empresa nos EUA, onde neste ano a Shein superou a H&M e a Zara para tornar-se a maior varejista, em vendas, do segmento de moda rápida, segundo dados da empresa de análises de dados do varejo Earnest Research. “Passamos os últimos dez anos construindo as fundações da empresa”, acrescenta. “É difícil que marcas chinesas consigam chegar ao Ocidente e fazer um nome para si”. 

A Inditex, maior varejista de roupas do mundo, foi pioneira na ideia de adaptar rapidamente os estilos das passarelas e agregá-los a roupas que pudessem ser compradas por consumidores comuns nas lojas. Depois, nomes como Boohoo, no Reino Unido, e Fashion Nova, nos EUA, valeram-se de um modelo de “testar e repetir” – produzir pequenas quantidades de uma grande variedade de estilos – para acelerar o processo, encurtando o tempo entre as passarelas e o varejo de massa para apenas algumas semanas. 

Agora, contudo, a Shein diminuiu esse intervalo ainda mais (para apenas uma semana) e em uma escala muito maior. A cada dia, a marca adiciona 6 mil itens on- line, muito mais do que qualquer varejista similar consegue fazer. A empresa reage em tempo real às tendências captadas não por “fashionistas” e estilistas, mas por softwares analíticos, que vasculham sites de compras e redes sociais on-line. 

Enquanto as varejistas de moda consolidadas dependem pesadamente do Instagram para promover-se no mundo das redes sociais, a Shein pegou carona no crescimento do TikTok, o aplicativo chinês de vídeos curtos que também se tornou extremamente popular no mundo todo. 

Para os consumidores da geração Z, a empresa se tornou sinônimo do fenômeno no TikTok de influenciadores publicando vídeos em que experimentam ou comentam as peças recebidas nos pacotes de compras da Shein para seus seguidores on-line. 

A Shein também obtém uma proporção muito maior de suas vendas por meio de aplicativos para aparelhos móveis, em vez de em sites convencionais, e pegou ideias emprestadas do mundo dos games – como relógios de contagem regressiva e até jogos cujos prêmios são descontos em seus produtos – para aumentar o engajamento e os gastos nesse canal. 

Antes de concluir uma compra, os compradores são incentivados pelo aplicativo da Shein a continuar adicionando itens à cesta usando como apelo brindes e a entrega expressa, caso atinjam um determinado limite de gastos. Embora tais práticas sejam comuns entre varejistas de fast fashion, a Rouge, um site e agência de promoção de marcas, detectou que a Shein incluiu mais estímulos aos usuários para gastar mais ou divulgar dados pessoais do que qualquer outra. 

Dimitrios Tsivrikos, psicólogo especializado no consumidor, da University College London, diz que a Shein transformou as compras em uma forma de entretenimento on-line. “A mídia social tem sido um meio promocional muito eficaz para a Shein, especialmente com a ascensão do TikTok”. 

 “Os jovens podem usar as mesmas roupas apenas uma ou duas vezes antes de, eventualmente, jogá-las fora por medo de serem rotulados como ‘cheugy’”, acrescenta, referindo-se ao neologismo pejorativo que adolescentes usam para zombar do que está fora de moda e desatualizado. 

A Shein também é muito barata. O preço médio unitário de seus mais de 600 mil produtos é de apenas US$ 7,90. Analistas do Morgan Stanley concluíram que apenas a Primark, na Europa – que tem um modelo tradicional de produção, no sul da Ásia, com longos intervalos entre a concepção da peça e sua chegada às prateleiras – e a Forever 21, nos EUA, conseguem equiparar-se de forma consistente à Shein em preços de produtos básicos como jeans, vestidos e camisetas. 

Concorrentes do setor questionam como a Shein consegue vender seus produtos de forma tão barata, tendo em vista que os custos trabalhistas na China vêm subindo há anos e que, mais recentemente, a pandemia inflou os preços de quase tudo, dos tecidos ao frete aéreo. 

“Tentamos inserir isso num modelo [matemático] e simplesmente não conseguimos fazer com que os números batessem”, diz um executivo sênior de uma empresa britânica de moda. “Muitas dessas roupas são muito simples, mas a qualidade não é ruim para os níveis de preço.” 

Ele e outros citam as vantagens tributárias gozadas pela Shein. A maioria dos varejistas de moda constrói presença em seu mercado doméstico antes de expandir- se ao exterior, mas a Shein nunca vendeu roupas na própria China. Em vez disso, exporta valendo-se de remessas aéreas, a partir de sua base industrial em Guangdong, para seus principais mercados, como a Europa e os EUA. 

Essas transações são isentas de impostos de exportação na China e apenas uma pequena minoria dos envios para o exterior incorre em tarifas de importação no país 

de destino; o valor das remessas passíveis de tributação nos EUA começa em US$ 800, no Reino Unido o valor equivalente é de 135 libras esterlinas (US$ 178) e na Europa, de 150 euros. 

Como a Shein envia pacotes de sua base no sul da China endereçados individualmente, quase todas as remessas ficam abaixo desses limites e não estão sujeitas a impostos de importação nos EUA ou na Europa. Isso lhes permite cobrar menos que os concorrentes, cujas mercadorias incorrem em impostos sobre vendas. 

Além disso, durante grande parte de sua existência, a Shein se beneficiou de tarifas de envio com desconto, dada a classificação da China como “país em desenvolvimento” dentro da União Postal Universal, a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) que coordena as políticas postais, embora mudanças feitas em 2020 tenham reduzido a relevância desses abatimentos. 

A Shein também insiste que não ganhou das rivais no preço com o que na prática seria um subsídio das despesas operacionais, como os custos de frete aéreo. Em vez disso, a empresa aponta como motivo o sistema de sua cadeia de fornecimento na China. “Mantemos nossas margens muito baixas, reinvestindo o dinheiro para melhorar e replicar nossos negócios”, diz Chiao. 

Sua capacidade de fabricação está concentrada em torno de Panyu, distrito industrial da província de Guangdong, no sudeste do país. “Os chineses têm sido muito bons na indústria”, diz Chiao. “Por quê? Porque eles se trancam numa fábrica e fazem os produtos que os ocidentais lhes pedem para fazer.” 

Ele diz que a Shein usa fornecedores que projetam seus próprios produtos e os propagandeiam para os compradores da Shein, assim como “fabricantes terceirizados que trabalham exclusivamente” para a empresa. Os dois tipos de fornecedores produzem apenas pequenos lotes. 

“Foram necessários dez anos para erigir essas cadeias de abastecimento, porque a maioria dos fornecedores não quer vender apenas 100 peças”, acrescenta. Uma forma de convencê-los foi a condição de pagamento. “Começamos com 30 dias, algo que ninguém ouvia falar na época. Conseguimos que [os fornecedores] aderissem à maneira de contratação da Shein.” Como padrão, os prazos para que as empresas de roupa paguem a suas fábricas fornecedoras podem chegar a 90 dias. 

A empresa também insiste para que os fornecedores usem seu software, que roda na nuvem, de gestão de cadeia de abastecimento, algo incomum no setor, que muitas vezes ainda usa relativamente pouca tecnologia e se baseia em relações pessoais. Em função dessa integração, as linhas de produtos que melhor vendem recebem automaticamente novas encomendas em volumes maiores, segundo um consultor que trabalhou para a empresa. 

A Shein consegue pagar aos fornecedores mais rapidamente porque não precisa reservar muito caixa para estoques, graças a seu modelo “just in time”. O fato de recorrer a operadores de logística terceirizados e de não ter lojas físicas também permitiu que sua expansão não exigisse muito capital. 

Números da empresa de dados financeiros PitchBook indicam que para a empresa chegar a vendas anuais estimadas em US$ 10 bilhões, valor noticiado pela “Bloomberg” com base em fontes não identificadas, a Shein contou com um investimento total em seu capital social total de pouco mais de US$ 500 milhões. O 

dinheiro veio de nomes como Tiger Global Management, Sequoia e Jafco Asia. As três gestoras de investimentos não quiseram discutir seu envolvimento. 

É difícil saber exatamente o grau de inquietação que o crescimento de Shein vem causando em uma indústria mais do que acostumada à inconstância dos gostos do consumidor e à competição ferrenha. “Eu vi muitas coisas na moda que surgiram do nada”, disse um antigo alto executivo do setor. “Algumas quebram e viram cinzas, outras causam um impacto profundo. Ainda não está claro para mim em qual caso se encaixa esta.” 

Pablo Isla, que como CEO e presidente do conselho de administração foi o mentor da enorme expansão mundial da Inditex de 2005 em diante, se limitou a observar, em entrevista ao “Financial Times” no início do ano, que “não há apenas um modelo de negócios capaz de se mostrar bem-sucedido”. 

Por sua vez, Michael Maloof, da Earnest Research em Nova York, que acompanhou o rápido crescimento de Shein nos EUA nos últimos anos, diz ter sentido “preocupação genuína” entre executivos de varejistas de moda estabelecidas com os quais se encontrou. “Os EUA são um grande mercado para muitos deles.” 

Ele ressaltou que a Shein não está apenas conquistando novos clientes, mas conseguindo também uma alta frequência de repetição das compras, com base nos dados de transações de cartão de crédito e débito dos EUA analisados pela Earnest Research. Ele diz que os clientes da empresa parecem considerar seus preços baixos uma compensação aceitável para eventuais variações na qualidade e para prazos de entrega mais longos do que muitos dos concorrentes. 

Dado sua expansão e “modus operandi” incomuns, não é surpresa que as polêmicas venham na esteira da Shein. Ela foi acusada de copiar desenhos de peças por multinacionais, como a Dr. Martens e a Levi’s, e por estilistas individuais, como as empreendedoras britânicas Deborah Breen e Sarah Vaughan. 

A Shein informa que lida de forma rápida e justa com qualquer acusação de roubo de propriedade intelectual. Chiao também argumenta que a empresa agora apoia estilistas de moda independentes como Reia Toombs, uma das várias estilistas que hoje produzem linhas especiais para a Shein. Ela diz que a empresa respalda seus sonhos de ser uma estilista de sucesso. “O custo de manter minha marca era demasiado alto. Mas, agora, a empresa paga meus custos de fabricação e marketing.” 

As condições de trabalho em sua base de fornecedores também estão sob os holofotes. A empresa sustenta que trata bem os funcionários dos fabricantes terceirizados, pagando um salário 45% maior do que a média nacional. Mas uma investigação da “Sixth Tone”, uma revista on-line chinesa, descobriu que muitos dos fabricantes da Shein cortam custos também terceirizando para pequenas oficinas que pagam menos a seus trabalhadores e muitas vezes infringem as leis trabalhistas – uma reclamação que também já foi direcionada à Boohoo, do Reino Unido. Chiao diz que auditores da Shein verificam seus fabricantes terceirizados e que a empresa impõe ações disciplinares quando detecta algum problema. 

Grupos ambientalistas têm criticado a empresa por seu papel no aumento dos níveis da poluição gerada pela indústria de roupas. A indústria da moda é responsável por cerca de 5% das emissões mundiais de gases causadores do efeito estufa e, segundo algumas estimativas, menos de 1% das roupas são recicladas. 

Chiao disse que a Shein tenta “mitigar ativamente” seu impacto ambiental por meio de seu modelo de abastecimento de pequenos lotes, que evita o desperdício de grandes quantidades de estoque não vendido, mas não procura se desculpar das acusações de estimular a demanda por roupas descartáveis. “Isso é o que os consumidores querem”, diz. 

A Shein também vem se afastando aos poucos seu foco tanto no segmento ultrabarato do mercado quanto de sua histórica aversão à publicidade. A empresa lançou uma marca mais refinada, conhecido como Moft, que usa tecidos de melhor qualidade, mas ainda tem preços abaixo dos equivalentes do mercado de massa. 

Neste ano, a empresa fez uma oferta pela Topshop – a marca britânica de moda que era a joia da coroa da Arcadia, o império do varejo de Philip Green que acabou quebrando -, embora tenha perdido para a Asos. 

“No passado, as pessoas [diziam] que estávamos sendo intencionalmente misteriosos por algum motivo nefasto, mas a verdade é que estávamos apenas nos concentrando nos negócios e trabalhando”, diz Chiao. “Mas, a esta altura, estamos vendendo roupas para o Ocidente e as pessoas querem falar sobre nós. Estamos prontos para nos engajar mais agora. ” 

Há quem já tenha percebido. Em outubro, analistas do Morgan Stanley reduziram em até 34% suas previsões de médio prazo para os resultados e os preços das ações de 15 grandes grupos da moda, com ações negociadas na Europa, EUA e América Latina, que consideraram particularmente expostos ao rápido crescimento da Shein. 

 “Achamos que o recente desempenho decepcionante de vários varejistas on-line europeus pode, na verdade, estar parcialmente ligado ao sucesso emergente da Shein”, afirmaram os analistas do banco de investimentos. 

Acima de tudo, a preocupação centra-se no que a emergência de um operador tão competitivo, em um espaço de tempo relativamente curto, implica sobre os graus de dificuldade para entrar no setor. A ascensão de Shein sugere “que outros nomes semelhantes ou ainda mais desestabilizadores podem perfeitamente surgir nos próximos dez anos, aumentando ainda mais a pressão competitiva neste mercado”. 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/12/13/como-a-shein-atraiu-jovens-e-superou-a-zara-nos-eua.ghtml

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