Começa a maratona de Cannes, em sua 75ª edição

Apesar de a capa da “Cahiers du Cinéma”, a bíblia da cinefilia, deste mês, ser dedicada à volta do canadense David Cronenberg aos écrans, com seu “Crimes of the Future”, o longa “Stars at Noon” é o primeiro título que já se calça do burburinho na linha “Já ganhou!”, numa torcida bem prematura, quando se fala sobre o 75º Festival de Cannes. A largada será dada esta terça, com a projeção de gala da comédia de terror “Coupez!”, de Michel Hazanavicius, sobre um ataque de zumbis a um set de filmagens. Do Brasil, o balneário vai rever um cult, “Deus e o Diabo na Terra do Sul” (1964), de Glauber Rocha, em sua seção de clássicos restaurados. E é só. Na competição estarão 21 longas-metragens esperadíssimos: “Decision To Leave”, do sul-coreano Park Chan-Wook; “Showing Up”, da americana Kelly Reichardt; “Tori e Lokita”, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenn; e “Armageddon Time”, que o estadunidense James Gray dirigiu sob a produção do brasileiro Rodrigo Teixeira. Todos esses títulos passarão pelo crivo do ator francês Vincent Lindon, o presidente do júri de 2022, e seu time. Os filmes serão julgados por ele, por quatro atrizes de peso – Deepika Padukone, da Índia; Noomi Rapace, da Suécia; Rebecca Hall, de Inglaterra; e Jasmine Trinca, da Itália, sendo que essas duas também são diretoras – e quatro cineastas: Asghar Farhadi (Irã); Ladj Ly (Mali – França); Jeff Nichols (EUA); e Joachim Trier (Noruega). E ainda tem, fora de concurso, sessões de “Top Gun: Maverick”, com homenagem a Tom Cruise; e “Elvis”, de Baz Luhrmann, sobre a gênese do canto e da ginga de Mr. Presley. E, já na abertura, o ator e diretor Forest Whitaker (oscarizado em 2007 por “O Último Rei da Escócia”) receberá uma Palma Honorária, por toda a sua excelência em cartaz, diante e atrás das telas.

Cannes esboçou uma edição número zero em 1939, quando o Oscar já era um rapazinho de dez anos, com a proposta de ampliar a paleta de cores e identidades nacionais nas premiações industriais do cinema, fazendo a telona falar nas mais variadas línguas. Pela afinação técnica da produção americana, à época, a vitória na briga pelo prêmio principal, chamado Grand Prix, ficou com Cecil B. DeMille (1881-1959) e seu “Aliança de Aço” (“Pacific Union”). Mas aí veio a Segunda Guerra Mundial, com força total, e o Festival só voltou a ocorrer em 1946, de banho de loja tomado, repaginado, com 41 longas no programa oficial e mais dezenas de curtas. Só em 1955, o troféu nº 1 da maratona passou a ser chamado de Palma de Ouro, sendo que a primeira foi para “Marty”, dos EUA. Desde então, o evento passou a mobilizar a Croisette – rua em frente à praia onde fica o Palais des Festivals, o centro nervoso de exibições – a fim de fazer dela um laboratório para novas estéticas e novas propostas de narrar. É importante destacar que este senso de “novidade” está sempre relacionado a uma posta na pluralidade de etnias em foco, com relevo para o cinema eslavo, o africano, o romeno, o latino, o iraniano – terrenos que o Oscar resume a uma categoria, a de Melhor Filme Internacional.

Por sua aposta na diversidade, Cannes sempre gerou centelhas de revolução na arte. Foi de lá que saíram filmes que renovaram a ficção ao longo das últimas sete décadas com abordagens revolucionárias para a linguagem audiovisual: revolucionárias como “Os Incompreendidos” (1959); “Cléo das 5 às 7” (1962); “Blow-Up” (1967); “Apocalypse Now” (1979); “Sexo, Mentiras e Videotape” (1989); “Pulp Fiction” (1994); “Rosetta” (1999); “Elefante” (2003); “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias” (2007); “Valsa com Bashir” (2008); “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” (2010); “No” (2012); “O Filho de Saul” (2015); “The Square” (2017); “Parasita” (2019); e o controverso “Titane”, de 2021. Alguns saíram de lá direto para os braços de Hollywood e até ganharam Oscars. Outros só tiveram vida útil em circuitos alternativos. Mas todos esses (e mais alguns) fizeram barulho no imaginário cinéfilo e modificaram a maneira de se filmar, de se roteirizar ou de se atuar, impondo assim novos padrões, seja de mercado, seja de reflexão, fazendo com que até a Academia, lá em Los Angeles, precisasse olhar atenta para a Croisette para poder decidir que filmes oscarizar. E só um brasileiro ganhou a Palma até aqui: “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte (1920-2009), há 60 anos.

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