Uma rádio para acalmar gatos durante visitas ao veterinário, óculos de realidade virtual que transformam falas de atores no teatro em legendas e uma ferramenta para guiar refugiados são exemplos recentes de uma estratégia pouco comum na propaganda: as campanhas que não vendem nada e são direcionadas a um público que muitas vezes nem sequer tem condições de ser cliente da companhia em questão.
Esse tipo de ação tem ganhado terreno tanto no Brasil quanto em outros países. É uma forma das marcas se conectarem a grandes temas e, quem sabe, vender produtos mais adiante. “As marcas precisam provar que são fundamentais para a vida das pessoas. E isso não se faz apenas vendendo produtos”, afirma Mario D’Andrea, presidente da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap).
Em alguns casos, a estratégia “social” está próxima do produto vendido. É o caso da rádio Calm Cat, da marca de comida Whiskas, da americana Mars. O serviço, gratuito e disponível na internet, foi originalmente criado no Canadá. Aos poucos, a rádio – na verdade, uma lista de músicas que ajuda a acalmar os felinos, de 45 minutos de duração – foi se expandindo para outros mercados.
No Brasil, a Samsung iniciou a experiência da publicidade “social” em uma ação que envolveu cem deficientes auditivos, que não podiam ir ao teatro porque não ouviam as falas dos atores. Na peça O Pai, com Fulvio Stefanini, a empresa desenvolveu, por meio de óculos de realidade virtual, uma tecnologia que transformava os diálogos em legendas. “Foi um sucesso. E repetimos em outra temporada, na peça O Arquiteto e o Imperador da Assíria”, conta a diretora de marketing corporativo da companhia, Andréa Mello.
Olhando para diferentes públicos, a Samsung também se associou a um aplicativo gratuito para alfabetização de adultos para uma cooperativa de reciclagem de São Paulo. Agora vai lançar uma aplicação que ensina cegos a tocar violão (sem a necessidade de tirar as mãos do instrumento para ler em braile). E vai colocar na internet uma websérie em três capítulos, Reconectados, para conscientizar as pessoas a usarem menos o celular (ler mais ao lado).
Na mesma linha, Google, Microsoft e TripAdvisor se uniram para guiar refugiados sírios durante sua viagem rumo à Europa, em 2017. Foram desenvolvidos aplicativos, páginas em mídias sociais e conteúdos que poderiam ser acessados mesmo que os celulares estivessem sem crédito e em áreas sem Wi-Fi. Também foi formada uma rede de ajudantes em várias capitais da Europa para os quais os refugiados podiam ligar a cobrar.
Atrás de ações sociais, porém, podem estar razões econômicas. “Tecnologia é algo que está cada vez mais commodity. Se a marca tem uma ligação mais humana com você, a chance de haver uma conexão e você escolhê-la é muito maior”, diz Ricardo Diniz, diretor de criação da Isobar, que criou a websérie para Samsung.
Na opinião de Roberto Valdrighi, gerente de marketing da Whiskas no Brasil, a marca precisa pensar em como ser útil para o consumidor. “Nossas ações e conteúdos, por exemplo, são sempre voltadas a ajudar os ‘gateiros’”, diz o executivo.
Mas não é qualquer marca que topa entrar nesse jogo. Geralmente, esse caminho é trilhado por líderes, que podem sustentar o discurso ou o ponto de vista que adotam. Se isso não ocorrer, a mensagem corre o risco de soar falsa. “Essas são ações que provam o discurso da marca. Por isso, é necessário ser transparente. Não é o tipo de campanha que a agência oferece ao cliente. A decisão deve partir da empresa”, diz D’Andrea.
Uma pessoa toca a tela do celular 2.617 vezes por dia, em média, segundo a empresa de pesquisas americana Dscout. Outro levantamento, feito pela Samsung, com 400 pessoas no Brasil este ano, mostrou que 67% das pessoas mexem no smartphone durante o jantar. Outras 75% confirmam presença online em eventos, mas não comparecem a eles. O mesmo estudo também constatou que 38% dos participantes têm mais de sete grupos no WhatsApp, mas que raramente encontram pessoalmente esses contatos.
Pensando na alienação que o celular pode causar, a Samsung está promovendo duas ações para que as pessoas usem menos o produto que ela fabrica. A primeira dessas ações é uma websérie sobre o uso exagerado do celular e a outra é um aplicativo que avisa o usuário quando ele está grudado demais no aparelho. Com três capítulos, a websérie Reconectados estreia no dia 10 e foi criada pela agência Isobar. “Isso é um anseio das pessoas hoje em dia. Não estamos falando de cima para baixo”, diz Ricardo Diniz, diretor criativo da Isobar.
Já o app chama-se Thrive foi lançado em parceria com a colunista americana Arianna Huffington. É gratuito, mas só funciona em alguns modelos da marca. E limita as notificações aos contatos que forem especificadas pelo usuário como essenciais.
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