Muita coisa tem sido escrita sobre a possibilidade de o fiasco dos negócios com as ações da GameStop ter sido resultado de movimentações ilegais de grupos de pequenos investidores mal-intencionados, ou pequenos investidores corretos investindo contra um sistema financeiro manipulado. A decisão da Robinhood de proibir seus clientes de varejo de adquirir a ação enquanto fundos hedge continuavam negociando em todo canto, transformou o acontecimento em uma história do tipo Davi contra Golias.
Mas essa história é baseada numa ideia falsa, que é a de que os mercados foram “democratizados” e que as pessoas que negociam a partir de seus telefones de alguma forma representam um capitalismo mais inclusivo.
Elas não representam. Mercados e democracia não são a mesma coisa, embora a maioria dos políticos – democratas e republicanos – venha agindo, desde a década de 80, como se fossem. Esse período foi marcado pela desregulação do mercado, maior intervenção do banco central para suavizar o ciclo de negócios via política monetária após o fim do sistema cambial de Bretton Woods, e ascensão do capitalismo dos acionistas. Isso combinou com o início da transformação da economia americana de um sistema em que a prosperidade era baseada no emprego seguro e no crescimento da renda, para outro em que empresas e muitos consumidores passaram a se concentrar, cada vez mais, nos preços sempre em alta dos ativos como a medida mais importante da saúde econômica.
No momento, o estímulo fiscal de curto prazo visando amenizar os problemas econômicos causados pela covid-19 está distorcendo esse quadro. Mas deixando isso de lado, a economia dos Estados Unidos encontra-se num ponto em que os ganhos de capital e as distribuições das contas individuais de aposentadoria representam uma parcela tão grande dos gastos pessoais com consumo, que será difícil o crescimento prosseguir se houver uma grande correção nos preços dos ativos.
Este é um dos motivos de a GameStop ter afligido tanto as pessoas. Ele lembra os americanos do quanto somos dependentes dos mercados, que podem ser muito, muito, voláteis.
A mudança de curso de 40 anos a que o presidente George W. Bush referiu-se como uma “sociedade proprietária”, aconteceu num momento em que a natureza da corporação e o pacto entre as empresas e a sociedade também estava mudando. É claro que os dois fenômenos estão relacionados.
A transformação dos mercados colocou mais pressão de curto prazo sobre as empresas, que cortaram os custos via terceirização, automação, uso de menos mão de
obra sindicalizada e trocando os planos de pensão de benefícios definidos pelos planos 401k, que deposita a responsabilidade pela escolha dos investimentos e os riscos de resultados ruins individualmente sobre os trabalhadores. Em 1989, 31% das famílias americanas tinham ações. Hoje, esse número é de quase 50%. Agora, ao que parece, somos todos “day traders”. Meu filho de 14 anos recentemente me disse que eu deveria “comprar na baixa”, o que nada fez para afastar meus temores de que podemos estar em meio a uma bolha épica.
A GameStop é o reflexo perfeito de tudo isso. O esforço em última análise mal- sucedido de apertar os “short-sellers” (vendedores a descoberto) forçando uma alta no preço da ação demonstra os riscos dos mercados. Ao mesmo tempo, a própria companhia ilustra como a natureza do emprego mudou.
Em um estudo de 2015 da Brookings Institution, o sociólogo e professor de administração da Universidade de Michigan, Jerry Davis, monitorou o crescimento do nível de emprego, ligado a todas as ofertas públicas iniciais de ações (IPOs) realizadas entre 2000 e 2014, e constatou que o maior criador individual de novos empregos orgânicos foi, surpreendentemente, a GameStop. A então rede de lojas em crescimento acelerado tinha um exército de entusiastas por videogames que trabalhavam meio período e geralmente ganhavam menos de US$ 8 por hora. Eles eram “a nova face da criação de empregos na América”, escreveu Davis, cujo livro de 2009 é uma história maravilhosa sobre a ascensão da sociedade “proprietária”.
Entrei em contato com Davis, que hoje está na Universidade Stanford trabalhando em um novo livro sobre a natureza mutante das corporações, para saber o que ele pensa sobre a GameStop e a controvérsia que a cerca. Ele resume o cenário geral tão bem quanto qualquer um: “Resgatar de vendedores a descoberto um empregador que paga salários tão baixos, bombando o preço das suas ações, não é exatamente algo parecido com invadir a Bastilha”, E mais, acrescenta ele: “O acesso fácil da Robinhood aos negócios com ações não democratiza o mercado acionário mais do que a Purdue Pharma democratizou o vício em opiáceos. A democracia diz respeito à voz, e não a negócios”.
Espero que os políticos e as autoridades reguladoras tenham em mente essa verdade fundamental durante as próximas audiências sobre a GameStop e a Robinhood.
Acredito plenamente que a secretária de Estado, Janet Yellen terá, com base em sua promessa recente de enfrentar a desigualdade de longo prazo.
Embora os aplicativos e as redes sociais tenham levado mais gente a negociar ações, isso não tornou mais forte o nosso capitalismo orientado para o mercado. Nossa economia é muito baseada nos gastos do consumidor e esse consumo se apoia na inflação dos preços dos ativos, que agora pode ser produzida por adolescentes em seus quartos. Se as tendências de emprego atuais continuarem, muitos desses adolescentes acabarão trabalhando em empregos informais sem uma rede de segurança para apanhá-los quando suas carteiras colapsarem.
Isso não é sustentável nem encorajador da democracia liberal. É por isso que aplaudo a promessa de Joe Biden de transformar a economia dos EUA de uma que prioriza a “riqueza” para uma que recompense o trabalho.
Os detalhes do fiasco da GameStop deveriam ser analisados e os vilões punidos. Mas não podemos nos esquecer da principal lição: uma economia em que as fortunas individuais são tão intimamente ligadas à saúde do mercado de ações, em vez do crescimento da renda, é frágil. Especulação, não importa o quanto seja compartilhada, não é democracia.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-maior-licao-da-gamestop.ghtml