Tensão separatista cresce na Irlanda do Norte após o Brexit

A pandemia trouxe dificuldades para David Milliken, que vende tambores, bandeiras e cartazes pró Grã-Bretanha em sua loja em Sandy Row, Belfast, um reduto de legalistas – como são chamados os unionistas norte-irlandeses ligados às milícias pró-Londres. Mas, segundo ele, agora “as coisas estão voltando a funcionar”, sobretudo “desde que a agitação voltou”.

Dois meses atrás, Sandy Row explodiu em chamas quando manifestantes mascarados arremessaram pedras e bombas de gasolina na polícia para protestar contra o que chamavam de “traição do Brexit”. Como a temporada de marchas legalistas começa no próximo mês, há temor de que esse episódio violento seja apenas o começo.

Assim como outras pessoas em Sandy Row, David Milliken, 49, disse não querer a volta dos “Troubles”, conflitos armados sangrentos que duraram trinta anos. A disputa se deu entre nacionalistas – católicos que demandam unificação do país com a República da Irlanda-, e protestantes unionistas e legalistas, que desejam permanecer no Reino Unido.

Os legalistas afirmam que o Brexit abalou a relação entre a Irlanda do Norte e o resto do Reino Unido, e inflamou os ânimos sectaristas a um nível que há décadas não era observado.

Isso é bom para Milliken, ao menos no que diz respeito aos negócios, afinal ele fornece materiais para as bandas legalistas, que marcham no dia 12 de Julho em comemoração à vitória de William de Orange sobre o reino católico de Jaime II, em 1690.

Normalmente, essa demonstração de orgulho protestante irrita os católicos. Mas, desta vez, são os legalistas – e não os nacionalistas-, que se sentem cercados e amargurados. 

Milliken comparou a situação dos legalistas, um grupo particularmente barulhento na Irlanda, à dos republicanos irlandeses em seus dias mais difíceis durante o conflito com os soldados britânicos.  “É uma versão semelhante do que aconteceu com a outra comunidade”, afirma Milliken. “Os jovens perceberam nos últimos anos que a intimidação com violência é algo que funciona”, diz.

A nova onda de violência representa uma ameaça ao Acordo de Belfast, também conhecido como Acordo da Sexta-Feira Santa – firmado em 1998 – que acabou com décadas de conflito sectário, em parte por enfraquecer políticas identitárias na Irlanda do Norte. 

O Brexit reacendeu esss ânimos, que podem se intensificar no próximo ano se, como pesquisas sugerem, o principal partido nacionalista Irlandês, o Sinn Fein, tornar-se o maior partido do país num cenario de divisão e desmoralização de unionistas. 

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já alertou o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Boris Johnson, para não prejudicar o Acordo de Belfast, negociado com a ajuda de outro presidente democrata, Bill Clinton. Espera-se que Biden aborde a questão nesta semana durante encontro com Johnson antes da reunião do G7 em Cornwall, sudoeste da Inglaterra.

Biden também está cogitando a nomeação de um enviado presidencial para a Irlanda do Norte, uma perspectiva que encanta o Sinn Fein e alarma os legalistas, temerários de que o presidente favoreça os nacionalistas.

O gatilho para os protestos recentes foi a decisão da polícia que permitiu o funeral de um chefe de inteligência do Exército Republicano Irlandês, mesmo com as restrições de aglomeração relacionadas a Covid-19.

No entanto, a principal causa dos conflitos é o chamado Protocolo da Irlanda do Norte, uma construção jurídica pós-Brexit que deixou o Norte separado dos sistemas comerciais da Grã-Bretanha e da União Europeia. 

O protocolo foi criado a partir de um acordo entre Londres e Bruxelas para evitar o ressurgimento de uma fronteira mais sólida entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Porém, isso exige o controle das mercadorias que transitam entre o Norte e o resto do Reino Unido, o que gera custo comercial e psicológico.

“Isso atingiu a comunidade como uma tonelada de tijolos, que é o que representa a separação da Irlanda do Norte do resto do Reino Unido”, diz  David Campbell, presidente do Conselho de Comunidades Legalistas, ao qual se vinculam grupos paramilitares que supostamente estão por trás dos protestos.

Campbell diz que os paramilitares  tentaram manter as pessoas fora das ruas, mas alerta que, a menos que o protocolo seja descartado ou radicalmente reformulado, haverá violência novamente durante a temporada de marchas.

“O problema da violência está no lado unionista”, afirma Campbell. “Isso precipita a violência no lado republicano”, diz.

Até agora, a raiva parece concentrada em áreas unionistas e legalistas. Em Sandy Row, há placas em postes de luz declarando que o bairro “nunca aceitará uma fronteira no mar da Irlanda” – uma referência aos controles sobre o comércio com a Grã-Bretanha. Uma faixa semelhante está pendurada ao lado de um lote cheio de lixo, onde os moradores estão estocando madeira para queimar em fogueiras na noite anterior a 12 de julho.

Legalistas interpretam como outro golpe a eleição de Biden, que colocou um irlandês-americano na Casa Branca. Isso após os quatro anos em que Donald Trump expressou apoio pela Grã-Bretanha e seu divórcio com a União Europeia. 

Jonathan Powell, ex-chefe de gabinete de Tony Blair, primeiro-ministro britânico na época em que foi firmado o Acordo de Belfast, reconheceu que Biden pode ser importante no protocolo. “A Grã-Bretanha tem pouco apoio fora da União Européia, então há um limite para o quão longe é possível ir contra o que o governo deseja”, acrescentou Powell.

Até agora, Johnson tem assumido uma postura dura nas negociações sobre o protocolo. Seu assessor sênior, David Frost, diz que cabe à União Europeia propor soluções para as interrupções nos controles de fronteira. Do contrário, a Grã-Bretanha poderia abandonar o protocolo – uma medida que, segundo a União Europeia, viola a revogação do acordo, embora autoridades do bloco tenham ameaçado desfazer o protocolo elas próprias em janeiro.

Críticos afirmam que o governo conservador está liquidando os legalistas através de táticas rígidas. “Existe uma relação entre os legalistas e o partido conservador”, diz Powell. “O Partido Conservador está tornando a política da Irlanda do Norte interessante de uma maneira que não queremos que ela seja, que é sobre identidade”, afirma. 

Os legalistas, por sua vez, sentem-se órfãos do establishment político. Muitos dizem acreditar que o governo britânico os vendeu para fechar o acordo do Brexit com Bruxelas. Eles são igualmente céticos em relação aos Unionistas Democratas, um partido da Irlanda do Norte que apoiava o Brexit e agora está em desordem por causa do acordo de Johnson.

O partido depôs recentemente sua líder, Arlene Foster, e está discutindo como se preparar para as eleições para a Assembleia da Irlanda do Norte em maio de 2022. Agora há algo que antes considerado inconcebível: o Sinn Fein emergir como o maior partido, com o direito de nomear o primeiro ministro.

Com vestígios de ligações entre o Sinn Fein com o Exército Republicano Irlandês paramilitar e o compromisso fundamental com a unificação irlandesa, uma Assembleia liderada pelo partido poderia se revelar muito mais desestabilizadora para os  acordos de divisão de poder da Irlanda do Norte do que as regras comerciais pós-Brexit, que são difíceis de explicar e menos ainda de usar como um grito de guerra.

Os líderes do Sinn Fein dizem que, com uma população católica crescente e as consequências do Brexit, o capital político está do lado deles. Os partidos unionistas apoiaram o Brexit, embora hoje se oponham a ele. Eles vêem a campanha contra o protocolo como um esforço inútil,  que apenas expõe os custos de deixar a União Europeia.

“É uma escolha muito difícil”, disse Michelle O’Neill, líder do partido e vice-primeira-ministra da Irlanda do Norte, em uma entrevista. “Você quer fazer parte do Brexit Britânico voltado para o interior ou da Irlanda inclusiva voltada para o exterior?”

Outra questão é como as autoridades vão lidar com mais protestos. Em abril, a polícia reagiu contra as multidões de atiradores de pedras, tratando-as como um distúrbio local, em vez de uma ameaça à segurança nacional. Mas se a violência aumentar, isso pode mudar.

Monica McWilliams, acadêmica e ex-política que esteve envolvida nas negociações de paz de 1998, afirma que as ameaças legalistas ou ações violentas contra uma fronteira no Mar da Irlanda não podem mais ser vistas como “um problema doméstico”.

Segundo ela, o maior desafio é tranquilizar unionistas e legalistas num momento em que a política e a demografia estão se movendo claramente contra eles. Embora haja pouca vontade na República da Irlanda para um referendo de curto prazo sobre a unificação, o Sinn Fein está a uma distância impressionante de estar no poder em ambos os lados da fronteira – fato que colocaria a unificação diretamente na agenda.

Em Sandy Row, a sensação de uma comunidade em recuo era perceptível.

Paul McCann, 46, lojista e morador na região durante toda a vida, afirma ter observado como os incorporadores imobiliários estão comprando blocos na periferia do bairro para construir hotéis e apartamentos de luxo. Segundo  McCann, a cidade quer demolir a ponte Boyne –  uma antecessora da qual Guilherme de Orange teria cruzado em seu caminho para aquela batalha fatídica com Jaime II –  para criar um centro de transporte

“Eles estão tentando encobrir nossa história”, disse McCann. “Estão tornando nossas comunidades legalistas cada vez menores.”

Para Gordon Johnston, organizador comunitário de 28 anos, é uma questão de justiça: os legalistas aceitaram o argumento de que reimpor uma fronteira dura entre o norte e o sul da Irlanda poderia provocar violência. O mesmo princípio deve ser aplicado à Irlanda do Norte e ao resto do Reino Unido.

“Você não pode ter as duas coisas”, disse ele. “Ou você não tem fronteiras ou tem violência nas ruas”

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