Carlos Frederico Lucio
Em uma entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo para falar sobre seu último livro intitulado “O Futuro Chegou”, de modo simpático e positivo, o eminente sociólogo italiano Domenico de Masi, autor de teorias como o “ócio criativo” afirma que
“Os índios não trabalhavam. Não era necessário. Tudo
estava na natureza. Não precisavam nem se vestir,
porque o clima era bom. O brasileiro herdou do índio
esse senso de ócio.”
Reiterando a antiquada visão idílica do “bom selvagem” e da “natureza exuberante”, idealizada e românica como portadora de benesses e facilidades, presente em vários mitos (contemporâneos ou clássicos) do nosso mundo ocidental, e embora a intenção do sociólogo italiano seja a de elogiar o ócio brasileiro, ele não deixa de cometer uma série de equívocos guiados por este estereótipo. A teoria de De Masi está inserida num rol de críticas ao sistema capitalista – em particular, ao mundo do trabalho – e suas consequências para a construção do homem moderno. Desta forma, parte da ideia de que é necessário pensar nos espaços de descanso, da contemplação e do “nada fazer” como parte integrante do processo produtivo e até mesmo como forma de redistribuição da mais valia gerada.
Embora reconheça alguns pontos positivos propostos por esse pensamento, entendo que, ao sr. De Masi, faltou – especificamente no caso brasileiro – um pouco de profundidade no conhecimento (ou na sua verbalização) a respeito tanto da realidade dos nossos povos indígenas, quanto da nossa própria formação histórica e sociocultural.
Para qualquer cientista social, ouvir que o nosso “culto ao ócio” é herança indígena, é de uma superficialidade tamanha que causa comichão no fundo da alma. Esse clichê iluminista de que os índios não trabalhavam (e não trabalham), de que são preguiçosos, de que cultuam o ócio etc., e que foi daí que herdamos nossa leseira, é de um nonsense sem tamanho. Sem falar que este tipo de ideia contém o germe pernicioso (embora saiba que não tenha sido intenção do sr. De Mais) de reacender a chama do preconceito com relação à indolência, à falta de produtividade dos povos indígenas. Na trilha das consequências desse estereótipo, tais populações seriam um estorvo ao desenvolvimento econômico, ao sucesso do capitalismo etc. e precisariam ser incorporadas o quanto antes como mão de obra proletária ao processo produtivo nacional. (O Brasil testemunha, há séculos, barbaridades que este tipo de ideia promoveu e continua promovendo – vide o caso Guarani Kayowá que está, vez ou outra, pipocando na mídia.)
Para não me estender muito, gostaria de ressaltar dois aspectos importantes no diálogo com essas ideias de Domenico de Masi proferidas na entrevista à Folha:
1) Os povos indígenas trabalhavam e trabalham muito. A diferença é que eles não têm uma mentalidade cumulativa: trabalhar para acumular bens. Consequentemente, o tempo dispendido no trabalho pode até ser um pouco menor, quando comparado ao nosso. Entretanto, isso não significa que não se dê muito duro nas lavouras, nas caçadas, nas coletas e nas demais atividades (como artesanato e, antigamente – como bem demonstra Florestan Fernandes – na guerra). A esse respeito, basta ler um pouco de Marshall Sahlins (grande antropólogo americano) e sua análise da sociedade da afluência e o nosso querido Darcy Ribeiro (só para citar dois exemplos) para entender um pouquinho dessa questão.
2) Dizer que nós herdamos a preguiça e a leseira dos índios é, no mínimo, ignorar a cultura anti-trabalho do catolicismo da nobreza europeia, tão genialmente analisado por Max Weber e trazido para a interpretação do Brasil pelo “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda (Cap. “O aventureiro e o trabalhador do livro). Para o nobre católico europeu, o trabalho é um descaminho para Deus (a quem se deve chegar pela contemplação e pela oração); ao contrário do burguês protestante, para quem o sucesso no trabalho era um grande sinal de ser um “eleito” por Deus para a Salvação no Paraíso.
Até um jovem de 18 anos, aluno meu, calouro de Administração de Empresas na ESPM, aprendeu esta lição, expondo em um trabalho:
“Ideias inspiradas por Weber que diz sermos herdeiros
de uma tradição europeia católica e de nobreza e por
tal motivo nascemos avessos ao trabalho e ao esforço,
o que nos levou a nossa atual mentalidade social e
destruição generalizada dos pontos que compõem a
tríade da modernidade.”
A despeito desta ideia, que pode ser verdadeira se levamos em conta os parâmetros da produtividade capitalista, é muito interessante relembrarmos que recentemente, a Organização Internacional do Trabalho divulgou uma pesquisa revelando que o “brasileiro trabalha mais e produz menos”. Segundo a pesquisa:
“Um brasileiro trabalha por ano, em média, mais
horas do que um francês, italiano, suíço, alemão,
norueguês, dinamarquês ou belga.”
Ou seja, parece que a ideia de um “ócio nacional”, idealizada por De Mais, está mais para um mito do que para uma realidade. Claro que, como mito, tem sua força e eficácia simbólicas muito presentes em nosso imaginário e em nosso cotidiano. Como afirma, de certo modo, Roberto DaMatta: uma sociedade que quer ganhar muito, fazendo pouco esforço. Entretanto, saindo do campo do imaginário e entrando na realidade, os dados nos colocam como uma das nações que mais trabalha no mundo. O que não vemos é o resultado desse esforço traduzidos em ganhos efetivos, tal como gostaríamos.
Além do mais, ainda que este culto ao ócio exista sob certos aspectos e dimensões, estaria muito mais vinculado a uma tradição nobre católica europeia do que uma tradição indígena propriamente dita. No máximo, uma fusão das duas lógicas, mas cujo fator orientador de comportamento mais forte viria da nossa formação nobiliárquica ibérica.
Curioso é que, como bem me lembrou um amigo, “Domenico” é o nome que os italianos costumam dar a quem nasce num domingo, dia de descanso, de repouso. Coincidência ou não, é do italiano que vem a expressão “dolce far niente” e este tem sido o tema que tornou célebre este sociólogo mundo afora.
Desta maneira, embora, como já afirmei, o Sr. De Masi tenha feito o seu comentário em tom elogioso ao ócio indígena (e, por tabela, ao brasileiro), precisaria conhecer um pouco mais nossas tradições indígenas assim como se se lembrar melhor das nossas raízes europeias e, em particular, a nossa latinidade – que partilhamos tão proximamente com ele.
Esse tipo de argumento pode causar certo impacto, mas creio que não se sustenta.