Sem perder o DNA, Globo busca ser uma ‘media tech’

Por João Luiz Rosa
Com 22 anos no Grupo Globo, do qual é presidente executivo desde dezembro de 2017, Jorge Nóbrega tem acompanhado de perto as transformações do maior conglomerado de comunicação do país. Coube a ele, em 2005, coordenar a criação da estrutura corporativa do grupo, centralizando o planejamento estratégico, o orçamento dos negócios e a gestão financeira. Em 2014, o conglomerado passou a se chamar Grupo, implantando vários mecanismos internos de aproximação e cooperação entre os negócios, nas áreas de tecnologia, conhecimento do consumidor e comercial. Agora, a missão de Nóbrega é fazer com que a Globo, sem abandonar seu DNA de conteúdo, se transforme em uma empresa de tecnologia. Ou, como ele explica, em uma “media tech”.
“A maneira como se consome mídia está evoluindo muito rapidamente por causa da experiência digital”, diz Nóbrega. “Hoje não importa só a qualidade do conteúdo, mas a experiência do espectador: como consome, onde consome, associado a quê”. Essa junção entre conteúdo e experiência ocorre por meio da tecnologia, o que está levando companhias tradicionais de mídia a enveredar nessa direção.
O movimento é uma reação ao tipo de concorrência que surgiu nos últimos anos – e que continua a aumentar. A competição vem das empresas de internet, como Google, Netflix e Amazon. Essas companhias conseguiram estabelecer vínculos diretos com o usuário, dos quais passaram a acumular montanhas de dados sobre preferências e hábitos de consumo.
Uma estratégia central da Globo é buscar esse mesmo grau de relacionamento. Cem milhões de brasileiros assistem à Rede Globo em algum momento do dia, diz Nóbrega. Essa audiência inspirou a campanha institucional “cem milhões de uns”, lançada em 2017. A questão é que a tecnologia de radiodifusão, usada pelas emissoras de TV aberta, não permite obter informações tão detalhadas sobre o comportamento do público quanto as plataformas da internet.
“Nosso primeiro desafio é transformar essa audiência massiva da Globo, que não tem comparação com qualquer empresa de mídia no mundo em relação a seu mercado; e entender quem são esses 100 milhões de uns”, afirma o executivo.
O grupo criou o Globo ID, sistema de identidade digital com o qual está formando seu próprio banco de dados. Toda vez que alguém entra na internet para votar no “Big Brother Brasil” ou no jogo eletrônico Cartola Futebol Clube – que conta com 14 milhões de times formados por fãs -, mais informações alimentam essa base única. O mesmo ocorre com as interações do público com as demais propriedades da Globo. Independentemente da porta pela qual o usuário escolhe entrar, o sistema reconhece tratar-se da mesma pessoa. “Isso cria muito valor”, diz Nóbrega. “É uma grande novidade para uma empresa de mídia tradicional.”
Essa busca para se aproximar do consumidor também é delineada pelas mudanças no Globoplay. Lançado em 2015, o
serviço de “streaming” estava inicialmente voltado ao chamado “catch up tv”, um meio de dar às pessoas a oportunidade de
ver programas que perderam durante sua exibição na TV ou de assisti-los novamente. Reformulado no fim do ano passado, o Globoplay teve seu papel ampliado de maneira expressiva. Passou a produzir séries exclusivas, como “Ilha de Ferro” e “Assédio”, e comprou os direitos de produções internacionais de sucesso, como “The Handmaid’s Tale” e “The Good Doctor”.
Seja para acessar conteúdo aberto e gratuito, ou fechado e pago, o consumidor precisa do Globo ID para navegar no Globoplay, o que traz repercussões para negócios que vão além da TV aberta. Por meio da Globosat, o Grupo Globo controla 32 canais pagos, que incluem GNT, GloboNews, Multishow e SporTV. O conteúdo, porém, é exibido por plataformas de terceiros – as operadoras de cabo ou satélite, que detêm o histórico do assinante, inclusive de cobrança. Com o Globoplay, essa relação muda. “Posso oferecer coisas diretamente para o consumidor, o que não era possível antes”, diz o executivo.
“A maneira como se consome mídia está evoluindo muito rapidamente por causa da experiência digital”
Tudo isso gera a necessidade de uma segunda linha de mudança, afirma Nóbrega. Os diferentes negócios, como TV aberta e fechada, já não têm fronteiras entre si porque o conteúdo, independentemente da origem, tornou-se passível de ser oferecido diretamente ao consumidor. “Tudo o que separávamos antes agora é uma coisa só. Então, não faz sentido ter empresas separadas [no grupo]”, diz.
O resultado dessa concepção é o projeto “Uma Só Globo”, que visa unificar todas as companhias de audiovisual do grupo. “Daqui a algum tempo não teremos mais empresas separadas… Vamos ter uma só Globo. E a Globo será uma empresa de muitos serviços”, afirma Nóbrega.
O projeto começou em setembro passado e terá duração de três anos. A consultoria Accenture foi contratada para ajudar no processo. A unificação vai ocorrer entre as companhias da Globo Comunicação e Participações, que reúne Rede Globo, Globosat, Som Livre, Globo.com e Globoplay. A GCP fechou 2018 com receita líquida de R$ 14,7 bilhões e mais de R$ 10 bilhões em caixa. A dívida bruta foi de R$ 3,37 bilhões. O resultado, divulgado na semana passada, não inclui a Editora Globo, de jornais e revistas, entre os quais o Valor, e o Sistema Globo de Rádio.
Com o projeto, a expectativa também é simplificar a estrutura da companhia para ganhar sinergia e aproveitar melhor as competências existentes, diz Nóbrega. Como exemplo, ele cita a área de tecnologia. Somando todo o pessoal especializado, dividido pelas diferentes empresas, a equipe de engenharia soma cerca de 4 mil pessoas. “Para determinadas coisas, precisamos de competência única”, afirma o executivo. “Não podemos ter três ou quatro centros de realidade aumentada. Vou ter um só, mas extremamente competente nessa tecnologia.”
Integradas por profissionais de diferentes setores, níveis hierárquicos e empresas da Globo, diversos grupos internos passaram a se reunir sob acompanhamento da Accenture. “Estamos revendo profundamente processos de trabalho, produtos e organização para que essa transformação aconteça rapidamente”, diz Nóbrega. “Tem de ser muito rápido e tem de ser radical. Não podemos fazer aos poucos”.
O trabalho tem dois focos: encontrar maneiras de tornar mais rentáveis os negócios atuais e formas de usar os recursos dessas atividades para criar negócios novos. Os grupos recebem missões específicas, com um período de tempo pré- determinado para propor soluções. Testada e aprovada, a solução é implantada. À medida que alguns terminam suas atividades, outros são criados. “Em uma ‘media tech’, as pessoas precisam aprender rapidamente e a tecnologia não pode ser algo à parte. Ela é inerente [ao trabalho]. Não é uma área externa prestando serviço”, diz Nóbrega. “Quem está numa atividade-fim precisa ter familiaridade com tecnologia para criar soluções com a equipe especializada.”
Não há planos, por enquanto, para incluir os meios impressos sob a mesma estrutura consolidada. “O que existe é uma relação entre as duas unidades quanto à troca de experiências em publicidade digital. Estamos fazendo muito isso”, diz Nóbrega. O mesmo ocorre com apoio tecnológico. “Lá na frente vamos ver se o melhor é juntar tudo ou deixar separado.”
“A atenção a novas tecnologias e modelos de negócio não implica abandonar as forças tradicionais do grupo”
Na busca pela inovação digital, a Globo partiu para novas experiências, como o investimento em startups. “Temos entrado como sócios em empresas digitais de diferentes ramos”, diz Nóbrega. Entre outros aportes, a lista inclui a Órama, uma startup de serviços financeiros ou fintech; a Rappi, de entregas de produtos; e a Enjoei, um brechó digital.
O modelo usado nesses casos é o de “media for equity”, formato que o executivo viu funcionar bem na Alemanha. A Globo adquire uma participação na startup, que se compromete a usar os recursos recebidos para comprar mídia do grupo. Funciona como uma troca: a empresa novata ganha um sócio, dinheiro para fazer publicidade e ajuda profissional para planejar suas ações de mídia. Para a Globo, esclarece Nóbrega, não interessa só a mídia, mas o próprio resultado da startup.
Outros investimentos estão sendo feitos sob modelos diferentes. A companhia abriu uma unidade no Vale do Silício, na Califórnia, para servir de posto avançado de potenciais aportes diretos. “Temos uma lista de empresas que estão sendo observadas”, diz Nóbrega. Também comprou uma participação na americana Magic Leap, que cria tecnologia de realidade mista – uma combinação entre realidade virtual, na qual o usuário mergulha em um mundo fictício com o uso de óculos especiais, e realidade aumentada, a projeção de imagens digitais sobre cenários reais.
Nóbrega gostou muito do que viu até agora na Magic Leap. “O produto é fantástico. Ainda está sendo finalizado e vai ser lançado [nos Estados Unidos] pela AT&T.” Outros investidores de peso entraram no capital da mesma empresa, incluindo a Alphabet, controladora do Google, e o Fundo Soberano da Arábia Saudita.
A Globo também está interessada nos esportes eletrônicos ou e-sports – a realização de campeonatos de videogame em estádios e sua transmissão via TV e internet. A companhia se associou à dinamarquesa RFRSH Entertainment para promover a etapa brasileira de um dos maiores campeonatos internacionais do jogo Counter-Strike. A disputa será realizada na sexta-feira e no sábado desta semana, no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, e será transmitida pelo SporTV.
Essa atenção a novas tecnologias e modelos de negócio não implica abandonar as forças tradicionais do grupo, diz Nóbrega. “O brasileiro vê 4 horas e 17 minutos por dia de TV aberta ou fechada; e mais ou menos metade disso é Globo”. A rede social é um indicador da resiliência da televisão no país. Em 2018, enquanto o número de tuítes sobre séries da Netflix somou 750 milhões, os comentários sobre TV aberta e fechada chegaram a 31 bilhões.
“Toda nossa estratégia está baseada em não negar, muito pelo contrário, em reconhecer a força da televisão e juntar TV aberta e fechada às oportunidades digitais”, afirma Nóbrega. Entre os espectadores de TV, 42% veem seus programas favoritos com o celular na mão enquanto navegam na rede social. Ao combinar esses meios, a Globo tem condições de oferecer aos anunciantes tanto a experiência que acumulou com suas marcas e formatos tradicionais como os novos requisitos que vêm sendo exigidos pela publicidade digital, diz.
Graduado em administração pela Fundação Getúlio Vargas e mestre em engenharia industrial pela PUC do Rio de Janeiro, Nóbrega tornou-se, ele mesmo, um usuário frequente do Globoplay. “Não consigo ver TV na hora [em que os programas estão sendo exibidos]”, afirma. A novela das 9 é exceção. “Geralmente, vejo todo dia.”
No comando executivo do grupo, Nóbrega sucedeu a Roberto Irineu Marinho, que está na presidência do conselho. O papel que assumiu, diz o executivo, não envolve a área criativa. Mas, à sua maneira, ele desenvolveu paixão pela narrativa. Pós- graduado em literatura e fã dos livros – em papel, não eletrônicos – Nóbrega escreveu, como tese acadêmica, um conjunto de sete livros infantis que foi ilustrado pelo quadrinista Eloar Guazzelli e premiado pela Biblioteca Nacional. É a história de um menino que foge de casa e viaja de ônibus pelo Rio. O leitor vê a imaginação do garoto retratada em cores. E a cidade de verdade, em preto e branco.

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