Se não me amas, eu te amo. Mas se eu te amo, cuidado. A Carmen, de Prosper Mérimée e Georges Bizet

Por Pedro de Santi

A ópera Carmen de Bizet é, provavelmente, uma das conhecidas do repertório. Mesmo quem não goste de óperas ou mesmo de música clássica certamente é capaz de reconhecer três ou quatro de seus temas. Isto torna irônico o fracasso da estreia, em 1875. Cerca de três meses depois, o compositor morreu, triste e sem saber do sucesso posterior de sua obra.
Um dos primeiros a se entusiasmar com a ópera foi o filósofo Friedrich Nietzsche. Antigo admirador de Richard Wagner e suas óperas trágicas baseadas na mitologia nórdica e grega, Nietzsche não perdoou a “conversão” de Wagner à temática e moralidade cristã da ópera Parsival. Ao assistir a Carmen, Nietzsche teria vibrado com sua exuberância, sensualidade e tragicidade. Outra curiosidade irônica: uma das críticas que a ópera recebeu à época foi ser demasiadamente…wagneriana. De fato, as orquestrações são grandiosas, há um amplo uso de escalas cromáticas, há temas relacionados a determinados personagens que são usados para evoca-los, como no “leitmotiv” de Wagner.
A personagem foi criada na novela de Proper Mérimée, em 1845. Tanto a novela quanto a ópera foram compostas em francês, mas evocando a sensualidade espanhola. Na novela, Dom José era um bandido da Andaluzia que se vê levado a se esconder na vida de soldado. Crime e violência já faziam parte de seu caminho. Nela, também não existe a personagem de Micaela, tão interessante para construir o conflito do soldado.
Na ópera, Dom José é seduzido numa cena leve por Carmen, ao lado das outras trabalhadoras de uma tabacaria. É a famosa cena da Habanera (“O amor é um pássaro rebelde”). Ao final da canção, Carmen lhe joga no rosto uma flor. O gesto é ambíguo; oferta e afronta. Ele não resiste e a colhe do chão. A flor contem um feitiço amoroso. Está construída a tragédia.
Em seguida, chega Micaela trazendo notícias e um beijo mandados por sua mãe. Dom José se comove e agradece à mãe por ter-lhe chamado à razão contra o feitiço. Ele se vê então ante um conflito: de um lado, o amor familiar e calmo, representado por Micaela, com quem a mãe quer que se case; de outro, o amor passional e enlouquecedor por Carmen. Este conflito irá consumi-lo e ele se entregará ao amor trágico, pagando o preço por ele.
Ele se perde em duas cenas cruciais. Carmen é presa por ter ferido uma mulher numa briga e Dom José é encarregado de escoltá-la. Ela o seduz cantando a também famosa Seguidilla. Ela promete amá-lo na estalagem do amigo Lillas Pastia se ele a deixar fugir. Ele cede e é preso. Após ser libertado, eles se encontram e ela cumpre a promessa, mas pela madrugada, eles ouvem soar o toque do quartel que anuncia que ele deve voltar. Ele se levanta e ela faz uma clássica cena histérica. Acusa-o de não amá-la, de ser um cordeirinho mandado, de ser fraco e pede que ele abandone a farda e se una a ela e aos ciganos da montanha. Ele afirma seu amor cantando a bela ária “A flor que você me jogou”. Antes que houvesse uma definição da situação, há uma confusão e ele foge com ela, despojando-se da vida que levava.
Por algum tempo, eles levam uma vida de bandidos, mas é claro que Carmen perdeu totalmente seu interesse e ele se põe a implorar e se rebaixar. Na novela, revela-se que Carmen é casada (Carlos Saura retoma isto em sua montagem do filme Carmen, 1983), o marido estava preso e Dom José o mata, tomando seu lugar. Ela deixa bem claro que gostava mais dele ante de ele se tornar um marido. O interesse de Carmen pelo toureiro aumenta e eles se encaminham para o desfecho da história.

Quanto à personagem de Carmen, há quem leia a ópera de modo a entender que ela se interessou por Dom José, mas se desinteressou ao encontrar seu verdadeiro amor, o toureiro (chamado Lucas, na novela e Escamillo, na ópera). Mas prefiro a leitura segunda a qual Carmen se apaixona por Dom José enquanto ele é uma figura de autoridade e seu interesse diminui na medida em que ele também se apaixona e se dobra ante ela; ele acaba por perder sua posição, abandonar seu rumo e se deixa levar pela paixão. Isto faz dele um fraco, aos olhos dela. Seu interesse é capturado pelo vaidoso toureiro, mas não seria de se estranhar se o interesse correspondido por ele não os levaria ao mesmo destino de ciclo do desejo.
Ela representa, afinal, uma das grandes encarnações da histeria, no século XIX: sedutora, insatisfeita, volúvel, perdendo o interesse em quem amava no instante mesmo em que ele se deixa seduzir. Há quem a compare com Madame Bovary, de Flaubert. Mas, nesta comparação, Emma Bovary encarna uma histérica reprimida, que não banca seu desejo e culpa o marido por isto. Ela adoece e passa a controlar e infernizar o outro através da doença. Ela espera por satisfação vinda do outro: em primeiro lugar, de seu marido; depois, de seus amantes; finalmente, no nascimento de um filho homem, desejo também frustrado.
Carmen banca seu desejo e destino, afirma-se em sua liberdade e se lança ao jogo trágico da vida e da morte. Ambas morrem no final (desculpem se estraguei a história…), mas o sentido de suas mortes é quase oposto: em Emma, a desistência do suicídio doloroso; em Carmen, a escolha por permanecer fiel a si própria.
Enlouquecido por ter sido abandoado, Dom José implora a Carmen que volte para ele. O confronto final é uma cena fantástica, duplicando o diálogo dos dois com o confronto de touro e toureiro ao fundo, na arena. O tema do toureador é tocado, mas entremeado de passagens sombrias, anunciando o desfecho. Carmen não cede e Dom José a mata. Imediatamente, ele abraça o corpo morto e diz que a ama. Em seguida entrega-se à polícia.
Morta a paixão, restitui-se a ordem. Em diversas montagens, mostra-se ao final um touro abatido ao lado do toureiro vitorioso. Tende-se a entender que Dom José representa o toureiro. Será?
Serviço:
Ciclo “Ópera e paixão”, terceiro encontro no dia 16/05, às 13:30, na sala B211. Com Pedro de Santi e Celso Cruz; apoio de Heraldo Biguetti.
Vale Acom.

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