A Alemanha pavimenta a retomada no pós-pandemia no caminho de descarbonizar sua economia. Há duas grandes mensagens no pacote de recuperação anunciado no início de junho pela premiê Angela Merkel e pelo ministro das Finanças Olaf Scholz. A primeira é a derrota histórica do lobby dos combustíveis fósseis da poderosa indústria automobilística do país, que receberá recursos públicos apenas para estimular carros elétricos e híbridos. A segunda é a aposta da maior economia da zona do euro no hidrogênio verde, ou seja, produzido apenas a partir de fontes renováveis de energia.
Do pacote total de estímulos de € 130 bilhões, € 50 bilhões foram destinados a novos investimentos em meio ambiente, sustentabilidade e digitalização. Serão recursos voltados à inteligência artificial, à pesquisa e inovação, à mobilidade sustentável, a impulsionar o uso da energia do hidrogênio e estimular o consumo de veículos elétricos, além de apoio ao sistema de saúde e à produção de remédios. Mais da metade dos 50 bilhões de euros são investimentos voltados efetivamente à proteção ao clima e ao meio ambiente.
Uma das críticas de ambientalistas alemães ao conjunto de medidas é o estímulo à produção de carros híbridos, que utilizam tanto energia elétrica como gasolina. Mas eles reconhecem que a política climática tornou-se mainstream no governo Merkel ao receber grande destaque no plano de recuperação econômica do país.
A estratégia foi desenhada nos ministérios da Economia, das Finanças e do Meio Ambiente.
A espinha vertebral dos investimentos alemães para os próximos anos – e décadas, no caso do impulso ao hidrogênio na matriz energética – é climática. A Alemanha tem o compromisso de se tornar um país neutro em carbono em 2050. O exemplo mais evidente é a aposta no hidrogênio.
O país investirá nove bilhões de euros para estimular o novo combustível em sua matriz energética. A estratégia nacional será financiada com sete bilhões de euros. O objetivo é tornar a Alemanha fornecedora mundial de tecnologias verdes a hidrogênio. Os outros dois bilhões de euros serão direcionados a firmar parcerias internacionais com países onde o chamado “hidrogênio verde” pode ser produzido com eficiência, como o Marrocos e a Espanha, grandes produtores de energia solar.
Para produzir hidrogênio é preciso muita energia, e a Alemanha terá que importar energia renovável de outros países, como o Marrocos e a Espanha, explicou ao Valor o embaixador alemão Georg Witschel. A intenção é ajudar a indústria de base alemã – química, de cimento e siderúrgica – a se livrar dos combustíveis fósseis e optar pela produção com menor emissão de gases-estufa.
O forte investimento em hidrogênio adotado pelo governo Merkel foi resultado de um intenso debate no país nos últimos dois anos. Há três tipos de hidrogênio, segundo a fonte de energia utilizada na produção. O “hidrogênio cinza” é produzido a partir de combustíveis fósseis como o carvão. O “hidrogênio azul” é uma forma híbrida, a partir da queima de gás. O verde é totalmente produzido a partir de renováveis. É mais limpo e muito mais caro. O plano incentivou apenas o hidrogênio verde.
A descarbonização total dos transportes e de setores da indústria que precisam de muito calor para sua produção pode ser difícil apenas com energia elétrica gerada através de energias renováveis, explica Luiz Augusto Barroso, ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e presidente da consultoria PSR. “O hidrogênio pode ser o ‘elo perdido’ na transição energética: a eletricidade renovável pode ser usada para produzir hidrogênio que, por sua vez, pode fornecer energia limpa para setores que seriam difíceis de descarbonizar através da eletrificação”, diz.
A Alemanha investirá para ampliar o fornecimento de energias renováveis em 5 GW até 2030 e mais 5 GW em 2040.
“O pacote tem muitos elementos verdes”, diz o embaixador Witschel. “Mas uma de suas mensagens importantes está na omissão: não haverá apoio do governo para carros com motores movidos a gasolina e diesel”
A aposta nos carros elétricos atendeu à demanda da sociedade alemã. Pesquisas indicaram que a maioria era contrária a subsídios a carros mais emissores e poluentes. Os consumidores, contudo, não compram carros elétricos por serem mais caros que os convencionais e pela ainda tímida rede de recarga nas rodovias e nas cidades.
O governo alemão, agora, dará um bônus de 6 mil euros ao consumidor que escolher comprar um carro elétrico, e a indústria se comprometerá com outros 3 mil euros. Isso tornará os carros elétricos mais competitivos. Haverá estímulo financeiro também para ampliar a frota de caminhões e ônibus elétricos.
O plano cruza estímulos sociais às vertentes ambientais. Na Alemanha, por exemplo, há um programa em que idosos podem receber visitas diárias de cuidadores para ver se precisam de algo para começar o dia. Estes assistentes sociais circulam muito, nas cidades, visitando várias casas todos os dias. Agora os cuidadores terão facilidades econômicas especiais para comprar carros menos poluentes.
Deixar de investir recursos públicos em carros movidos a combustíveis fósseis foi um dos pontos mais polêmicos do plano. A indústria, os fabricantes de autopeças, os sindicatos dos metalúrgicos e os governadores dos Estados onde ficam a Volkswagen, a Mercedes-Benz e a BMW pressionaram o governo Merkel. Estimativas indicam que existem mais de um milhão de carros parados nos pátios, sem compradores.
O lobby da poderosa indústria automobilística alemã contou até com o apoio do governador Winfried Kretschmann, de Baden-Württemberg, onde fica a Mercedes. Kretschmann é da Aliança90/Os Verdes e procurou atender a indústria local e os trabalhadores, mas foi vencido.
Políticos sociaisdemocratas, a ministra Svenja Schulze, do Meio Ambiente e até conservadores, como o ex-ministro das Finanças e atual presidente do Parlamento, Wolfgang Schäuble, foram decisivos para negar o bônus de compra de carros a gasolina e diesel.
“O sinal que o plano manda foi que o poderoso lobby da indústria de carros está quebrado”, diz Martin Kaiser, diretor executivo do Greenpeace da Alemanha. “Depois do ‘dieselgate’ perderam reputação. Foi um recado forte de que esta indústria terá que mudar”.
O cientista social Thomas Fatheurer diz que a parte de investimentos verdes do pacote alemão “é bem melhor do que muitos esperavam, especialmente porque não teve um bônus para ajudar os consumidores a comprar carros convencionais”.
Os ambientalistas alemães, embora reconheçam os méritos das iniciativas, dizem que não se trata de um “pacote verde” porque há uma redução de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) geral, sem critérios ecológicos.
A redução do IVA é temporária, apenas para este ano, com a alíquota sendo diminuída de 19% para 16%. É uma medida clássica para estimular o consumo, mas sem foco seletivo. É difícil prever o impacto sobre o consumo e a produção, que podem não ser sustentáveis.
“Se o pacote de recuperação reserva 20 bilhões de euros à agenda verde, cria incentivos errados, como o relaxamento do imposto sobre consumo”, critica Kaiser, do Greenpeace.
O pacote de estímulos tem mais de 50 tópicos detalhados e com previsão orçamentária.
Há apoio para pesquisa e inovação para tornar o transporte marítimo e aéreo menos emissor. A estatal ferroviária Deutsche Bahn também receberá investimentos em modernização.
Cerca de 2,5 bilhões de euros serão destinados a pesquisa e desenvolvimento. A intenção é promover projetos verdes e digitais, além de incentivar a pesquisa nas universidades.
Outros dois bilhões de euros serão investidos em um programa de modernização de edifícios, buscando maior eficiência energética e reduzir as emissões de gases do efeito estufa.
No plano de investimentos alemão, as prioridades do futuro serão, além do meio ambiente e da sustentabilidade, a digitalização e a resiliência.
No caminho digital, a Alemanha procura uma terceira via entre os Estados Unidos – onde os dados dos cidadãos são compartilhados com o setor privado – e a China, onde o Estado exerce o controle. Na visão alemã, a digitalização não é uma meta, mas um instrumento transversal a todos os setores. O governo Merkel entende que o país precisa investir para não perder espaço futuro no mercado internacional e na geopolítica.
Resiliência, por sua vez, é um termo na moda no bloco europeu. Ganhou força com a pandemia quando ficou evidente a dependência europeia à produção chinesa. O plano alemão destina 10 bilhões de euros à produção de remédios e apoio ao sistema público de saúde, hospitais e suprimentos.
Por causa da pandemia, a Alemanha estima que o PIB recuará 6,8% este ano, o pior resultado desde a Segunda Guerra Mundial.