Publicidade e o público infantil. CONAR ou CORTAR? – Tópicos para discussão – Parte I

Denise Fabretti

Tive a oportunidade de participar, no último dia 22 de abril, do debate promovido pelo Departamento de Humanidades e Direito da ESPM cujo tema vem atraindo a atenção da sociedade em geral: a discussão sobre a publicidade dirigida as crianças.

Nessa ocasião fiz algumas análises que pretendo compartilhar com os estudantes e professores no blog Nota Alta a título de “cutuco do mestre”. Assim, a minha proposta é a cada “cutuco” levantar um tópico correspondente as análises que fiz, nesse debate, e que gostaria que fossem objeto de reflexão e discussão sobre o tema.

O primeiro deles refere-se a Resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente ( CONANDA).

Proponho uma reflexão a respeito da legalidade dessa norma, da interpretação do CONANDA a respeito da publicidade abusiva prevista no Código de Defesa do Consumidor e também uma análise das regras já existentes que tratam da publicidade abusiva e o público infantil:

A partir da Resolução n 163/14 do CONANDA, percebe-se uma disposição do Poder Público em caminhar no sentido de proibir a publicidade voltada as crianças e jovens. A citada Resolução, embora não tenha força de lei e, portanto, não tenha o poder de alterar a ordem jurídica, fundamenta-se no Código de Defesa do Consumidor considerando a publicidade voltada ao público infantil como abusiva e determina, assim, a sua proibição.

Porém, a meu ver, o Código do Consumidor, que é lei e, portanto, tem a competência para alterar as relações que envolvem a sociedade de consumo, não proíbe a publicidade dirigida ao público infantil mas, ao contrário disso, reconhece a possibilidade de sua veiculação. Tanto reconhece a legalidade de sua veicularão que proíbe somente aquela que é feita de uma forma que venha a explorar a deficiência de julgamento e a inexperiência da criança. Nem toda publicidade dirigida as crianças tem essas características.

A citada legislação assim determina em seu art. 37 § 2°:

 

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

….

§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.

 

São duas interpretações diferentes: a) entender que a propaganda para o público infantil está proibida por ser uma modalidade de propaganda abusiva ; b) entender que uma propaganda dirigida para o público infantil que explore a ingenuidade do menor seja abusiva. Aliás, convém ressaltar que qualquer publicidade que se enquadre na situação prevista no Código de Defesa do Consumidor (explore a deficiência de julgamento e inexperiência da criança) será abusiva e não apenas aquela dirigida as crianças e jovens.

As normas éticas e legais em vigor em uma sociedade, para produzirem efeitos adequados, devem ser analisadas e interpretadas em conjunto. No que se refere a questão da publicidade dirigida ao público infantil o CONAR, em seu Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária confere subsídios importantes para a aplicação do art. 37 § 2º do Código de Defesa do Consumidor. Na seção dedicada a crianças e jovens (seção 11, art.37) estão elencados os elementos que permitem a compreensão do que significa a exploração da ingenuidade de crianças e jovens:

 

Artigo 37 – Os esforços de pais, educadores, autoridades e da comunidade devem encontrar na publicidade fator coadjuvante na formação de cidadãos responsáveis e consumidores conscientes. Diante de tal perspectiva, nenhum anúncio dirigirá apelo imperativo de consumo diretamente à criança. E mais:

I – Os anúncios deverão refletir cuidados especiais em relação a segurança e às boas maneiras e, ainda, abster-se de:

a. desmerecer valores sociais positivos, tais como, dentre outros, amizade, urbanidade, honestidade, justiça, generosidade e respeito a pessoas, animais e ao meio ambiente;

b. provocar deliberadamente qualquer tipo de discriminação, em particular daqueles que, por qualquer motivo, não sejam consumidores do produto;

c. associar crianças e adolescentes a situações incompatíveis com sua condição, sejam elas ilegais, perigosas ou socialmente condenáveis;

d. impor a noção de que o consumo do produto proporcione superioridade ou, na sua falta, a inferioridade;

e. provocar situações de constrangimento aos pais ou responsáveis, ou molestar terceiros, com o propósito de impingir o consumo;

f. empregar crianças e adolescentes como modelos para vocalizar apelo direto, recomendação ou sugestão de uso ou consumo, admitida, entretanto, a participação deles nas demonstrações pertinentes de serviço ou produto;

g. utilizar formato jornalístico, a fim de evitar que anúncio seja confundido com notícia;

h. apregoar que produto destinado ao consumo por crianças e adolescentes contenha características peculiares que, em verdade, são encontradas em todos os similares;

i. utilizar situações de pressão psicológica ou violência que sejam capazes de infundir medo.

II – Quando os produtos forem destinados ao consumo por crianças e adolescentes seus anúncios deverão:

a. procurar contribuir para o desenvolvimento positivo das relações entre pais e filhos, alunos e professores, e demais relacionamentos que envolvam o público-alvo;

b. respeitar a dignidade, ingenuidade, credulidade, inexperiência e o sentimento de lealdade do público-alvo;

c. dar atenção especial às características psicológicas do público-alvo, presumida sua menor capacidade de discernimento;

d. obedecer a cuidados tais que evitem eventuais distorções psicológicas nos modelos publicitários e no público-alvo;

e. abster-se de estimular comportamentos socialmente condenáveis.

III – Este Código condena a ação de merchandising ou publicidade indireta contratada que empregue crianças, elementos do universo infantil ou outros artifícios com a deliberada finalidade de captar a atenção desse público específico, qualquer que seja o veículo utilizado.

IV – Nos conteúdos segmentados, criados, produzidos ou programados especificamente para o público infantil, qualquer que seja o veículo utilizado, a publicidade de produtos e serviços destinados exclusivamente a esse público estará restrita aos intervalos e espaços comerciais.

V – Para a avaliação da conformidade das ações de merchandising ou publicidade indireta contratada ao disposto nesta Seção, levar-se-á em consideração que:

a. o público-alvo a que elas são dirigidas seja adulto;

b. o produto ou serviço não seja anunciado objetivando seu consumo por crianças;

c. a linguagem, imagens, sons e outros artifícios nelas presentes sejam destituídos da finalidade de despertar a curiosidade ou a atenção das crianças.

Parágrafo 1º Crianças e adolescentes não deverão figurar como modelos publicitários em anúncio que promova o consumo de quaisquer bens e serviços incompatíveis com sua condição, tais como armas de fogo, bebidas alcoólicas, cigarros, fogos de artifício e loterias, e todos os demais igualmente afetados por restrição legal.

Parágrafo 2º

O planejamento de mídia dos anúncios de produtos de que trata o inciso II levará em conta que crianças e adolescentes têm sua atenção especialmente despertada para eles. Assim, tais anúncios refletirão as restrições técnica e eticamente recomendáveis, e adotar-se-á a interpretação mais restritiva para todas as normas aqui dispostas.

Nota: Nesta Seção adotaram-se os parâmetros definidos no art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90): “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.”

 

A questão que se coloca é no sentido de se avaliar se essas normas (estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e Adolescente e CONAR, entre outras) são suficientes ou não para regular a publicidade dirigida as crianças. Fatos recentes parecem demonstrar que, sempre que se caracteriza o abuso, tanto o CONAR como os representantes dos poderes do Estado, podem agir fundamentando-se nessas regras já existentes: O PROCON do Rio de Janeiro no início do mês de abril, suspendeu as vendas dos ovos de páscoa Bis da Lacta. Isto ocorreu porque os produtos eram comercializados com adesivos para serem colados nas embalagens de presentes e a chamada publicitária trazia a seguinte mensagem para crianças e jovens : Personalize a embalagem com adesivos e sacaneie seu amigo. O produto era comercializado com adesivos com as palavras nervosinho, passa fome e nerd.

O PROCON entendeu isso como um incentivo a prática de bullyng e suspendeu as vendas dos produtos até que as embalagens fossem alteradas. Portanto, inibiu a prática abusiva por parte do anunciante.

Uma pesquisa no site do CONAR permite localizar inúmeros casos e decisões no sentido de se suspender ou alterar a veiculação de anúncios que desrespeitem a criança e o jovem. Seja por incitar o menosprezo em relação a quem não consome o produto ( o exemplo clássico das tesourinhas do Mickey e da Minnie), ou por usarem tom imperativo de consumo ( caso Mattel) ou coloquem a criança ou o jovem em situação incompatível com a sua idade (retrições às propagandas de bebidas alcoolicas, por exemplo), ente outros.

Segundo notícia extraída do site da APP ( Associação dos Profissionais de Propaganda (http://www.appudi.com.br/app.qps/newsview/AB36FC305851EFBC03257552006C4ECB) o CONAR recentemente agiu contra o serviço promocional de ringtones da Tim. Dirigido ao público infanto-juvenil, a ação, veiculada pela Nickelodeon, estimulava os espectadores do desenho Bob Esponja e da produção High School Musical, da Walt Disney, a fazerem downloads de conteúdos dos programas para os seus celulares.

De acordo com as justificativas fornecidas pelo próprio Conselho, a causa da liminar ( que recomendou a sustação da veiculação) reside no fato de esses comerciais não mostrarem de forma suficientemente clara que essas operações via celular geram custos e que, para executá-las, as crianças necessitariam da autorização dos pais.

A partir desses exemplos que retratam ações concretas e eficazes do Poder Público ( PROCON) e do Conselho responsável pela ética na propaganda proponho as seguintes questões para reflexão:

1. O Código de Defesa do Consumidor considera a publicidade infantil abusiva ou considera abusiva a publicidade infantil que explora a deficiência de julgamento e inexperiência da criança?

2. O Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária não são suficientes para regular de forma eficaz a publicidade dirigida ao público infantil?

3. As ações do PROCON e CONAR utilizadas como exemplo não permitem afirmar que a regulamentação atual já é eficaz?

4. Uma legislação que inserisse, no sistema jurídico, as regras do CONAR (não deixando-as somente no plano da Ética) estabelecendo multas nas situações em que se configuram a exploração de deficiência de julgamento e inexperiência da criança não substituiria, de forma eficaz, a proibição da publicidade dirigida ao público infantil?

Em uma próxima oportunidade pretendo propor a discussão a respeito da interferência do Estado nas relações familiares e os malefícios que podem advir de uma eventual proibição da publicidade dirigida ao público infantil.

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