Porque somos racistas: o Direito e a Sociedade no combate à construção da violência simbólica

Carlos Frederico Lucio

Mais uma vez o futebol brasileiro é arena para cenas de manifestações racistas por parte do público e o fato reacende um debate sobre o fenômeno em um país que, equivocadamente, parece se conceber como palco da fantasia da “democracia racial”. Somente em 2014, foram cerca de 12 casos registrados por injúria racial, de acordo com levantamento feito pelo jornal Folha de São Paulo(1). O último, ainda repercutindo na mídia e na esfera jurídica, envolveu a torcida do Grêmio que ofendeu visivelmente (os fatos foram registrados por câmeras em vários ângulos) o goleiro Aranha do Santos, numa partida no dia 28/08/14.

Em alguns outros momentos,(2) procurei refletir sobre o fenômeno do racismo e suas relações com aspectos diversos da sociedade. Por que somos racistas? O que significa o racismo? Quais os seus fundamentos? Que implicações este fenômeno traz para a democracia? Aqui neste texto, procurei sintetizar um pequeno guia do que as principais leis brasileiras falam sobre o tema. O que o nosso sistema jurídico nos fala sobre o tema e que relações isso guarda com a construção da verdadeira democracia? Quero deixar claro que falo do lugar das Ciências Sociais, não do lugar do Direito.

Somos uma nação multiétnica. E multirracial (em que pese a grande polêmica sobre o que seja o conceito de raça). Tem sido alvo de muita discussão o fato de que, a despeito disso, nós sejamos um país que oculta os conflitos derivados desta formação. É como se, entre nós, tivéssemos digerido bem aquelas ideias muito fortes até a primeira metade do século, de que fomos construídos a partir da fusão de povos constituídos por raças degeneradas, principalmente aqueles de origem africana. Nossa cara negra (mais até do que a indígena) nunca foi muito bem vista por nós. Além de degenerados, os negros em nossa formação sempre foram identificados com a ideia de subdesenvolvimento, de inferioridade, de brutalidade. Uma cara que nunca gostamos e que escurece nossas pretensões de termos uma origem exclusivamente europeia, sempre presente no imaginário brasileiro. Parece que, de uma certa forma, a política novecentista de branqueamento da população brasileira teria funcionado. Diluímos não só a pigmentação da pele, mas a tensão no espírito. A esse respeito, a literatura em Ciências Sociais está repleta de reflexões. E, ainda que dissimuladas e ocultas, as tensões se proliferaram em formas (às vezes nem tão dissimuladas assim) de discriminação e violência (física e simbólica). No entanto, fingimos que nada disso acontece e que isso não é um problema. Afinal, não praticamos a caracterizada segregação como os norteamericanos ou o Apartheid da África do Sul – porque isso sim seria racismo. Nossas práticas não.  Muito se pode pensar – e se tem pensado – a partir desta constatação.

Entre tantos outros aspectos é sempre importante ressaltar que, no caso brasileiro, nós temos um edifício jurídico que desde a metade do século passado prevê a figura do racismo e da injúria racial, o que tem trazido importantes resultados para o combate desta forma brutal de violência.

A primeira lei a reconhecer o fenômeno foi a Lei nº 1.390/1951, conhecida como Afonso Arinos, por ter sido proposta pelo jurista Afonso Arinos de Melo e Franco, que inclui entre as contravenções penais todos atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor. Apesar de ser considerado um significativa avanço no combate às formas de discriminação resultantes de práticas racistas (na medida em que é um seu primeiro reconhecimento oficial), esta lei sempre foi muito criticada por não prever a efetividade das punições, além de abrandar o racismo sob forma de “contravenção” e não crime efetivo. Ela, na prática, acabou entrando em desuso, sendo raramente acionada. Mas isso não apagou o brilho de sua importância aqui reiterada: pela primeira vez a legislação brasileira reconhece a existência desse fenômeno social e cria um mecanismo para combatê-lo.

É preciso entender a elaboração desta lei no quadro das discussões internacionais sobre o racismo a partir das consequências bastante conhecidas da Segunda Guerra Mundial neste campo. Assim, fomos forçados a assumir este problema, impelidos por importantes documentos do qual o Brasil é  signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e também o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)(3) assim como a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (conhecida como Conferência de Durban – 2001).

Lentamente, a figura do racismo foi se consolidando em nossas leis. Em 1967, ela não somente permaneceu, como foi endossada pela Constituição em pleno estado militar.

Mas foi somente a partir da Constituição de 1988, com a valorização das contribuições das etnias indígenas e africanas (inclusive com reconhecimento de direitos importantes a povos indígenas e quilombolas especificamente) que o corpo jurídico brasileiro encontrou mais sustentação para avançar no combate ao racismo.

Assim, com o importante suporte constitucional, foi sancionada a Lei nº 7.716/1989 (conhecida como Lei Caó, apelido do deputado proponente – Carlos Alberto de Oliveira). Considerado um dos mais expressivos avanços no combate ao racismo, esta lei o coloca não mais como uma simples contravenção, mas como um crime e, com isso, endurece no estabelecimento de suas punições. É importante sempre lembrar que formas de preconceito, discriminação e outras ações violentas não ocorrem apenas por questões raciais. Por este motivo, algumas alterações à Lei Caó se fizeram necessárias para que fossem contempladas as outras manifestações do fenômeno como problemas relativos à discriminação por idade, sexo e gênero, religião, etnia etc. inclusive já contemplando o espaço virtual da internet. Uma das últimas ações nesse sentido, foi a criação do Estatuto da Igualdade Racial (2010), e a Lei de Cotas (2012).

Retomando o ponto inicial do texto – o do resgate da valorização da contribuição das culturas africanas na formação do Brasil – Apesar de não diretamente ligada ao racismo, gostaria de finalizar mencionando uma importante iniciativa jurídica que, na minha opinião, é de uma expressividade simbólica sui generis. Ao assumir a presidência da república em 2003, o primeiro decreto assinado pelo então presidente Lula (a lei 10.639, de 09 de janeiro daquele ano) vai alterar a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, incluindo a simbólica data de 20 de novembro (eleita pelos movimentos sociais de autoafirmação da cultura afro-brasileira) no calendário escolar. Pela primeira vez na história do Brasil, pelo menos no nível oficial e jurídico, elevamos a contribuição africana na nossa formação a um patamar que a iguala à contribuição dos povos europeus. Isso, claro, é um instrumento importante no combate ao racismo, uma vez que expressa a valorização desta herança: somos africanos também; não apenas europeus. Nesta linha de ações, também é significativa a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade (a SEPPIR) que vem promovendo esforços nos dois sentidos: valorizar as culturas afro-brasileiras e combater o racismo.

Valorizar, de um lado, a contribuição africana e, do outro, tratar como crime o problema do racismo (e todas as outras formas de preconceito e discriminação) são mecanismos importantes para o combate do fenômeno. Como em outras esferas do comportamento social, está claro que o Direito desempenha um papel fundamental na construção de um comportamento cultural pois, como sabemos, não somente expressa mas pode gerar valores. Aqui, no caso, o valor do respeito: ainda que eu não queira, sou obrigado por lei a fazê-lo. E isso é extremamente importante na construção de uma democracia verdadeira na medida em que as pessoas são levadas a conviver com as diferenças não apenas de forma passiva (obedeço à lei porque sou obrigado), mas de forma extremamente ativa por meio de uma postura espontânea de respeito (por incorporação, ao longo de algumas gerações, desta obrigatoriedade como um valor, fazendo com que deixe de ser obrigação).  E isso é um valor que se constroi com o tempo. Para isso, sabemos todos, é preciso não apenas a existência da lei, mas a sua efetiva aplicação. E uma discussão de toda a sociedade.

Enquanto casos como o do goleiro Aranha não forem efetivamente punidos e amplamente discutidos, continuaremos a testemunhar episódios lamentáveis de racismo não somente no futebol, mas em todos os campos da sociedade.

Reconhecer a existência do fenômeno, caracterizá-lo de forma jurídica dando-lhe uma materialidade sob a forma de punições concretas, parece-me uma boa forma de acabar com ele.

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