Pequim prepara o país para outra Grande Marcha

A recente visita do presidente da China, Xi Jinping, à província de Jiangxi, o ponto de partida da Longa Marcha de 1934-1936, provocou um grande debate no país. Ao depositar flores num monumento em 20 de maio, Xi disse que a China está hoje em uma “nova Grande Marcha” para superar “grandes desafios internos e no exterior”.
A nova Grande Marcha é a estratégia de Xi para lidar com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Dias após a visita a Jiangxi, Trump esteve em Tóquio, dizendo a jornalistas que os EUA “não estão prontos” para um acordo comercial se Pequim não ceder para acomodar exigências americanas.
Um analista político chinês apresentou uma análise assustadora. “Seria errado simplesmente pensar que Xi passou a ter uma posição linha-dura com os EUA. O verdadeiro objetivo é vencer uma ‘guerra de 15 anos’ com os EUA que prosseguirá até 2035. Essa guerra virá com a opção de um recuo temporário, evitando assim uma guerra aberta com Trump.”
Não muito depois da formação do Partido Comunista Chinês, o Exército Vermelho chinês, antecessor do Exército da Libertação do Povo, estabeleceu uma fortaleza na cidade de Ruijin, em Jiangxi. Mas com o exército do Partido Nacionalista, que tentava cercar o seu inimigo, ganhando terreno, os generais do Exército Vermelho decidiram abandonar a fortaleza e iniciar uma odisseia de dois anos.
Inicialmente o Exército Vermelho dirigiu para o oeste, depois o norte, acabando por percorrer uma distância de mais de 12 mil km. Após terminar a Grande Marcha, o Partido Comunista sobreviveu em sua nova fortaleza, em Yan’an, província de Shaanxi, e acabou vencendo a guerra civil contra o Partido Nacionalista.
Os comunistas fundaram uma “nova China”, a República Popular da China, em 1949, 15 anos depois de iniciarem a Grande Marcha para evitar um confronto aberto com um inimigo mais poderoso. Quando a retirada terminou em Yan’an, as forças do Exército Vermelho estavam muito debilitadas.
Ao utilizar a metáfora da Grande Marcha para as atuais relações entre EUA e China, pode-se ver que o partido enfrenta uma situação igualmente preocupante. Embora reiterando em público que os EUA serão mais prejudicados pela guerra comercial, na verdade as tarifas impostas por Washington e as sanções severas contra grandes empresas chinesas, especialmente a Huawei, colocam a China em desvantagem.
Durante a entrevista coletiva conjunta com o premiê japonês, Shinzo Abe, em Tóquio, na segunda-feira passada, Trump disse: “Você sabe, as empresas estão deixando a China às centenas, milhares, indo para áreas não tarifadas”.
Um resultado certo das tarifas: uma onda de demissões que começou a se espalhar pelas empresas chinesas, pelo setor de comércio eletrônico e empresas estrangeiras que operam no país.
Se os trabalhadores perderem o emprego na cidade, muitos não terão escolha senão voltar para suas cidades de origem. Nada preocupa mais o Partido Comunista do que a ideia de uma rebelião de trabalhadores migrantes desempregados.
Alarmado com essa possibilidade, o Conselho de Estado, o Executivo chinês, inaugurou de repente, em 14 de maio, um novo órgão para ajudar pessoas que perderam o emprego subitamente a encontra uma nova ocupação. O vice-premiê Hu Chunhua foi escolhido para comandar o que foi chamado de “um pequeno grupo de liderança para a busca de empregos”.
O talentoso Hu não tem proximidade política com o grupo de assessores próximos de Xi. Embora encarregado dos assuntos econômicos, ele até agora não recebeu muito trabalho. Sua nomeação para comandar o grupo de emprego representa o seu retorno ao centro do cenário político.
O vice-premiê pertence à facção Liga da Juventude Comunista, adversária do campo de Xi. Ele foi escolhido porque há poucos assessores próximos de Xi com experiência suficiente. Isso mostra que Xi está respondendo à crise com uma “abordagem total do Partido Comunista”.
O premiê chinês, Li Keqiang, que também pertence à Liga da Juventude Comunista, fez uma teleconferência em 13 de maio para ajudar futuros formandos universitários a encontrar emprego ou a começar negócios próprios.
O conceito da “nova Grande Marcha” é conveniente para Xi por duas razões. Primeiro, invocar a luta histórica ajuda a unir um partido cada vez mais rachado devido ao modo como Xi e o vice-premiê Liu He estão conduzindo as negociações comerciais com os EUA.
O outro motivo é preparar o público para uma concessão a Trump. Apresentá-la como uma “retirada temporária” para evitar um combate corpo a corpo – no espírito da Grande Marcha – faria qualquer concessão parecer calculada.
Numa iniciativa não programada, o Serviço de Informação do Conselho de Estado organizou em 22 de maio uma entrevista coletiva para a mídia estrangeira em Pequim. Nela, Zhang Yansheng, principal analista do China Center for International Economic Exchanges, previu um confronto muito longa entre os EUA e a China.
Os dois países vão “negociar” de um lado e “combater” do outro até 2035, disse Zhang, que é secretário-geral do Comitê Acadêmico da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma da China.
Anteriormente em maio, outro analista da mesma entidade disse publicamente que os EUA e a China vão “negociar” de um lado e “combater” do outro. Este conceito é pronunciada como “tan tan da da” em mandarim, que se traduz como “conversa-conversa, ataque-ataque”. A consciência da necessidade de se preparar para uma guerra prolongada até 2035 começa a se disseminar por toda a China.
O ano de 2035 é o limite que o Partido estabeleceu no último congresso nacional, em 2017, para basicamente realizar a “modernização socialista”. Em outras palavras, é o ano-limite para a China superar os EUA economica e tecnologicamente.
Até lá são 15 anos, o que iguala o período de 15 anos entre o começo da Grande Marcha e a fundação da nova China. Efetivamente, Xi declarou que a China vai negociar de um lado e combater do outro durante a nova Grande Marcha e em algum momento derrotar os EUA.
O tempo está do lado de Xi. Mesmo que Trump seja reeleito em 2020, ele não poderá ficar no cargo além de 2025. Mas Xi conseguiu aprovar uma revisão constitucional que lhe permite permanecer como líder vitalício da China.
Para a China, o atual confronto com os EUA ainda é a escaramuça inicial da longa guerra. Xi não precisa se sentir pressionado, contanto que consiga evitar o fogo amigo que vem de dentro de seu partido.
Trump, enquanto isso, mostrou-se cheio de energia na entrevista coletiva com Abe, em Tóquio.
Referindo-se às negociações comerciais com a China, que agora estão à beira do colapso, ele mostrou um certo desgosto com a eliminação unilateral pela China de partes importantes do esboço de acordo compilado durante cinco meses de negociações difíceis.
No começo de maio, a China apagou cerca de 30% do esboço do acordo, reduzindo-o de 150 páginas para 105. A reviravolta ocorreu após líderes do partido criticarem medidas legalmente obrigatórias do esboço do acordo, classificando-as de “um tratado desigual”.
Trump então anunciou as tarifas. “Estamos imponto dezenas de bilhões de dólares em tarifas”, disse. “E esse número poderá aumentar muito e muito facilmente. Mas acho que em algum momento no futuro a China e os EUA certamente farão um grande acordo comercial. Esperamos por isso.”
Vai levar algum tempo para Xi conter as criticas internas ao “tratado desigual”, mas a sua retórica da Grande Marcha poderá ajudá-lo, em algum momento, a restabelecer o esboço ao que era, ou pelo menos perto do que era.
Dessa forma, o “líder vitalício” e o otimista presidente americano podem estar manobrando para voltar à mesma página do acordo.

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