‘Países do G-20 precisam transferir renda para indivíduos e empresas’

A crise causada pelo coronavírus exige “políticas verdadeiramente dramáticas” por parte dos governos e bancos centrais dos países do G-20, com a impressão de dinheiro para transferir renda a indivíduos e empresas por pelo menos dois meses, diz o economista inglês Jim O’Neill. Criador do conceito do Bric (o grupo formado por Brasil, Rússia, Índia e China), O’Neill afirma que, “de outro modo, a economia global terá uma contração enorme, com consequências muito imprevisíveis”. 

O Brasil deve seguir esse mesmo receituário, avalia ele, que batizou as medidas de “afrouxamento quantitativo para as pessoas” – uma referência à estratégia seguida pelos principais bancos centrais do mundo em resposta à crise de 2008, caracterizada pela compra maciça de títulos públicos e privados, com o objetivo de manter baixas as taxas de juros de longo prazo, conhecida como “QE” (sigla em inglês para quantitative easing). 

Na visão do inglês nascido em Manchester, o impacto da crise sobre o Brasil é duplo. “Uma completa paralisação das pessoas e de muitas atividades de seus principais parceiros comerciais”, além dos esforços deliberados para restringir o modo de vida normal da própria população, afirma ele, hoje presidente do centro de estudos Chatham House, sediado em Londres. 

“É facilmente a crise mais complexa a respeito da qual eu tive que pensar”, diz O’Neill, observando que se trata de “um choque de oferta e de demanda, causada por uma doença infecciosa e pelos esforços para evitá-la”. Para ele, a economia global já atravessa uma recessão. 

O’Neill trabalhou no Goldman Sachs entre 1995 e 2013, a maior parte do tempo como economista-chefe. Em 2001, criou o Bric, o acrônimo que fez a sua fama – a África do Sul entrou depois, e não por sua iniciativa. A seguir, os principais trechos da entrevista, feita por meio de uma troca de e-mails. 

Valor: À medida que o coronavírus se espalhou pelo mundo, as perspectivas para a economia global se deterioraram significativamente, além da China e além do primeiro trimestre. O sr. acredita que uma recessão global é inevitável? 

Jim O’Neill: Não apenas é inevitável. Nós já estamos quase definitivamente em recessão. Os números de fevereiro mostram que a economia na China pode ter caído algo como 20%. Se isso for uma informação precisa e, dado que a China representa algo como 15% a 20% do PIB global, significa que a variação da economia mundial, na média, terá sido negativa em fevereiro. Agora, em março, toda a Europa, os EUA e outros países estão fazendo o que a China fez ou alguma versão disso, o que acrescenta uma pressão [sobre a economia], a despeito de a China se recuperar um pouco. Então o ponto é quão ruim será, e por quanto tempo. Nós estamos definitivamente numa recessão agora, eu suspeito. 

Valor: A pandemia de coronavírus é vista como um choque gêmeo de demanda e de oferta. Quais são as principais implicações desta crise incomum para a economia global? 

O’Neill: É facilmente a crise mais complexa a respeito da qual eu tive que pensar (embora cada uma, quando surge, frequentemente provoque a mesma sensação!). Ela é de fato um choque de oferta e de demanda, causada por uma doença infecciosa e pelos esforços para evitá-la. A surpresa de uma vacina rápida – talvez improvável, mas não impossível – a resolveria. Mas na sua ausência, ou até que isso ocorra, nós provavelmente precisamos de políticas verdadeiramente dramáticas, que eu descreveria como um “QE para as pessoas”. Os governos dos países do G-20 e os seus bancos centrais provavelmente precisam transferir todas as rendas por pelo menos dois meses para os nossos cidadãos e empresas. 

Valor: Como o sr. vê o impacto do vírus sobre a economia chinesa? 

O’Neill: Como eu já disse, os indicadores de fevereiro sugerem um declínio de 20% na comparação com o mesmo período do ano passado. O crescimento chinês pode acelerar com força na segunda metade do ano, mas o primeiro e o segundo trimestres provavelmente serão muito negativos. 

Valor: Como os EUA vão ser afetados? Uma recessão na economia americana é provável? 

O’Neill: Sim. Os EUA e outros países estão deliberadamente fazendo com que as suas economias parem, para interromper a disseminação da covid-19. 

Valor: O PIB da zona do euro e do Japão vai encolher neste ano?
O’Neill: Quase certamente. Na primeira metade do ano, quase uma certeza. 

Valor: Como o sr. analisa a resposta dos governos e dos bancos centrais à crise? Eles ainda têm espaço para enfrentar a situação atual ou estão ficando sem munição? 

O’Neill: Eles precisam fazer o que aprenderam com o manual [da crise] de 2008, o que estão fazendo atualmente, mas ainda mais! Com urgência. Nós precisamos de um “QE para as pessoas”, como descrito acima. De outro modo, a economia global terá uma contração enorme, com consequências muito imprevisíveis. 

Valor: Quais são os principais impactos da crise sobre a economia brasileira? 

O’Neill: O impacto da crise do Brasil é duplo. Uma completa paralisação das pessoas e de muitas atividades de seus principais parceiros comerciais, além dos esforços deliberados – se estão sendo tomados – para restringir o modo de vida normal da própria população. 

Valor: O que as autoridades brasileiras devem fazer para enfrentar a crise?
O’Neill: No curto prazo, o mesmo que o resto dos países do G-20. Imprimir dinheiro 

e transferir para indivíduos e empresas pelos próximos dois meses. 

Valor: A economia brasileira encolheu 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016 e cresceu um pouco acima de 1% em 2017, 2018 e 2019. Por que o Brasil fracassou em crescer a taxas mais elevadas mesmo depois de uma recessão grave? 

O’Neill: Em parte por fatores externos. A economia global vinha desacelerando mesmo antes desta bagunça. Mas o Brasil se debateu até 2019 para promover reformas positivas de verdade. Agora estava de fato começando a mostrar alguns sinais [de melhora], mas a covid-19 torna impossível julgar. 

Valor: Em dezembro de 2019, alguns analistas estavam mais otimistas sobre o PIB do Brasil, estimando expansão de 2,5% para 2020, devido à combinação de juros mais baixos, aumento do crédito e melhora do mercado de trabalho. No entanto, com o impacto da pandemia e a incerteza política doméstica, várias projeções apontam para um crescimento de menos de 1% e algumas para zero. O sr. acha que esses números são realistas? 

O’Neill: Provavelmente não, por causa da covid-19. Pergunte-me em dois meses. Acho que as previsões para o PIB do ano inteiro de 2020 são hoje um pouco sem sentido. Se não interrompermos o colapso global combinado dos negócios muito em greve, uma previsão de zero ou algo positivo é irrealista. No entanto, se nós conseguirmos, então a chamada recuperação em “V” pode ocorrer. 

Valor: O governo Bolsonaro está enfrentando as principais fraquezas econômicas do Brasil? 

O’Neill: Ironicamente ele introduziu algumas das reformas tão necessárias no último ano, e eu aplaudo isso. Espero que haja muito mais quando esta crise finalmente retroceder. 

Valor: Em que medida a política ambiental do governo Bolsonaro pode afetar o investimento estrangeiro no Brasil? 

O’Neill: Eu não sou um especialista para julgar, mas provavelmente apenas de modo marginal, eu suspeito. 

Valor: Como a crise impacta os dois outros países do grupo do Bric – Índia e Rússia? 

O’Neill: Seriamente. A covid-19 não distingue entre brancos ou negros, comunistas ou democratas. Pode ser, eu enfatizo, pode ser que seja mais fácil para países em climas muito quentes para manter as taxas de infecção baixas. 

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/03/19/paises-do-g-20-precisam-transferir-renda-para-individuos-e-empresas.ghtml

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