The Economist; Um homem menor que Xi Jinping teria considerado isso desconfortável. Ao encontrar-se com Vladimir Putin, em Moscou, o líder chinês falou de “coexistência pacífica e cooperação de ganhos mútuos” enquanto jantava com um indivíduo que é alvo de um mandado de prisão internacional por crimes de guerra. Mas Xi não se abala com inconsistências triviais. Ele acredita no inexorável declínio da ordem mundial liderada pelos Estados Unidos, com suas professadas preocupações com regras e direitos humanos. Ele planeja moldar um sistema mais transacional, de pactos entre grandes potências. Não subestime os perigos desta visão — nem seu apelo ao redor do mundo.
Em relação à Ucrânia, a China fez sua aposta com as cartas que tinha, e se saiu com maestria implacável. Seus objetivos são sutis: garantir que a Rússia permaneça subordinada mas não fraca ao ponto de o regime de Putin implodir; polir suas próprias credenciais de pacificador aos olhos do mundo emergente; e, com um olho em Taiwan, minar a legitimidade percebida das sanções ocidentais e do apoio militar como ferramentas de política externa.
Xi propôs cinicamente um “plano de paz” para a Ucrânia que recompensaria a agressão russa e que, ele bem sabe, Kiev não aceitará. A proposta pede “respeito à soberania de todos os países”, mas não menciona que a Rússia ocupa mais de um sexto de sua vizinha.
Este é apenas um exemplo da nova estratégia de política externa da China à medida que o país emerge de seu isolamento covid-zero para encarar um Ocidente mais unificado. Em 10 de março, a China intermediou um acordo entre dois rivais amargurados, Irã e Arábia Saudita — uma intervenção inédita no Oriente Médio, que sublinhou a influência reduzida do Ocidente na região 20 anos após a invasão ao Iraque liderada pelos EUA. Em 15 de março, Xi lançou a “Iniciativa Civilização Global”, que argumenta que os países deveriam “se abster de impor seus próprios valores ou modelos sobre os outros e de fomentar confrontação ideológica”.
A estratégia chinesa não é improvisada. É sistemática e ideológica. Deng Xiaoping instou a China a “ocultar suas capacidades, dar tempo ao tempo”. Mas Xi quer reforjar a ordem mundial pós-1945. Os novos slogans da China buscam pegar emprestado e subverter a linguagem normativa do século 20 para que “multilateralismo” vire código para um mundo que descarta valores universais e é controlado por interesses de grandes potências em equilíbrio
. A “Iniciativa Segurança Global” trata de se opor a esforços para conter a ameaça militar da China; a “Iniciativa Desenvolvimento Global” promove o modelo de crescimento econômico da China, que lida com Estados autocráticos sem impor condições. A “Iniciativa Civilização Global” argumenta que a defesa dos direitos humanos por parte do Ocidente, em Xinjiang e outras partes, é um novo tipo de colonialismo.
Essa visão transacionalde mundo tem mais apoio fora do Ocidente do que seria de se pensar.Xi se encontraria em Pequim com o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, defensor de um mundo multipolar, que tem intenção de que a China ajude a negociar a paz na Ucrânia (a visita foi adiada em razão de uma pneumonia de Lula). Para muitos, a invasão ao Iraque, de 2003, expôs os dois pesos e duas medidas do Ocidente em relação ao direito internacional e aos direitos humanos, um ponto que a mídia estatal da China martela continuamente dentro do país. Depois dos anos de Donald Trump, o presidente Joe Biden voltou a envolver os EUA com o mundo, mas o pivô para a Ásia envolve diminuir presença em outras partes, incluindo Oriente Médio e Afeganistão.
O Ocidente tem mostrado determinação em relação à Ucrânia, mas muitos países estão ambivalentes a respeito da guerra e imaginam como ela irá acabar. Pelo menos 100 países, representando 40% do PIB global, não estão fazendo valer nenhuma sanção. A perseverança dos americanos está em dúvida. Trump e Ron DeSantis, seu rival republicano, não consideram a Ucrânia central para o interesse americano. Tudo isso cria espaço para novos atores, da Turquia aos Emirados Árabes Unidos, e, acima de tudo, a China. A mensagem chinesa — de que a democracia verdadeira acarreta desenvolvimento econômico, mas não depende da liberdade política — agrada em enorme medida as elites de países não democráticos.
É importante avaliar o que esta multipolaridade mercenária é capaz de alcançar. Irã e Arábia Saudita foram inimigos ferozes desde a Revolução Iraniana, de 1979. A China é o maior mercado exportador para ambos, portanto tem peso e incentivo para evitar guerras no Golfo, que também é sua maior fonte de petróleo. O acordo que Pequim ajudou a intermediar poderá fazer recuar uma guerra indireta no Iêmen que talvez já tenha matado 300 mil pessoas. Ou veja as mudanças climáticas. O apoio mercantilista da China à indústria das baterias é um catalisador para uma onda de investimento transfronteiriço que ajudará a diminuir as emissões de carbono.
Mas o objetivo real da política externa de Xi é tornar o planeta mais seguro para o Partido Comunista Chinês. Ao longo do tempo, será difícil esconder suas falhas. Uma rede de relações bilaterais convenientes gera contradições. A China apoiou o Irã mas escolheu ignorar sua atual escalada nuclear, que ameaça outros clientes de Pequim na região. Na Ucrânia, qualquer paz duradoura requer consentimento dos ucranianos. Isso também envolveria responsabilizações por crimes de guerra e garantias contra outro ataque. A China tem queixas em relação a três fatores: não acredita em democracia, direitos humanos ou restrições a grandes potências — seja na Ucrânia ou em Taiwan. Países que enfrentam ameaça de segurança direta da China, como Índia e Japão, ficarão ainda mais apreensivos. De fato, onde quer que algum país se encontre ao lado de um vizinho poderoso e agressivo, o princípio de que o mais forte define o que é direito significa que ele tem mais a temer.
Em razão da China quase sempre apoiar elites governantes, por mais ineptas ou cruéis que sejam, sua abordagem pode certas vezes ultrajar pessoas comuns em todo o mundo. Até esse momento, sociedades abertas estarão diante de uma luta entre visões em competição. Uma tarefa é impedir que a Ucrânia seja empurrada para um tratado de paz fajuto e que os países ocidentais aprofundem alianças de defesa, incluindo a Otan. O objetivo no longo prazo é refutar a acusação de que as regras globais servem apenas aos interesses do Ocidente e expor a pobreza que as visões de mundo da China e da Rússia estão promovendo.
A percepção mais importante dos EUA em 1945 foi que eles poderiam se tornar mais seguros vinculando-se a alianças duradouras e valores comuns. Essa visão idealista foi manchada por décadas de contato com a realidade, incluindo no Iraque. Mas o encontro em Moscou revela uma alternativa pior: uma superpotência que busca influência sem conquistar afetos e uma visão global que prescinde de direitos humanos universais. Quem acredita que isso tornará o mundo um lugar melhor deveria pensar duas vezes.