O poder abrangente do dólar

Poucos bancos transmitem a extraordinária serenidade observada na sede do Banco Delta Asia, em Macau. Alojado num prédio colonial na frente de uma igreja do século 16, sua entrada está ladeada por grandes vasos imitando os típicos barcos de madeira orientais em meio às pedras calcárias. Na praça ladrilhada do lado de fora homens descansam sob uma árvore de banyan (típica da Índia) e uma senhora descasca um ovo cozido para o almoço.
Mas em 2005 o banco despertou a ira e o poder da hegemonia financeira do mundo. O Tesouro americano acusou a instituição de lavar dinheiro para a Coreia do Norte, gerando pânico entre os seus correntistas, levando outros bancos a se distanciarem dele e o governo a intervir. Posteriormente, o Tesouro proibiu instituições financeiras americanas de manter uma conta correspondente para o banco, excluindo-o do sistema financeiro dos Estados Unidos.
Macau está a mais de 12.800 quilômetros de distância de Washington. Mas é difícil escapar do poder abrangente do dólar. Seu predomínio reflete o que os economistas chamam de externalidade de rede: quanto mais pessoas usam a moeda, mais útil ela se torna para todos. A disposição de uma pessoa a aceitar dólares de outra depende da rapidez com que uma terceira pessoa aceite esses dólares.
O dólar também se beneficia de um modelo “hub-and-spoke” para troca de moedas, para o faturamento comercial e a realização de pagamentos internacionais, como afirmou o falecido Ronald McKinnon, da Universidade de Stanford. Se as mais de 150 moedas fossem negociadas diretamente uma com a outra, o mundo necessitaria de mais 11.175 mercados de câmbio. Se, inversamente, elas se reportam ao dólar, bastam apenas 149. Se você não consegue comprar a moeda do Afeganistão (afegane) com o zloty da Polônia pode trocá-la por dólares com os quais vai adquirir a moeda polonesa.
Do mesmo modo, se cada banco internacional mantém uma conta em Nova York, qualquer banco pode transferir fundos para qualquer outro através do mesmo centro financeiro. “O sistema financeiro global é como um encanamento de esgoto em que toda a canalização passa por Nova York”, diz Jarrett Blanc, do Carnegie Endowment for International Peace.
Isto dá ao Tesouro americano um grande poder punitivo e alcance jurisdicional. Muitas empresas que não compram nem vendem produtos nos EUA realizam ou recebem pagamentos através de Nova York. Como essas transferências são feitas através de instituições financeiras americanas, o Tesouro pode fazer valer sua jurisdição com a justificativa de que seus bancos estão exportando serviços financeiros para maus elementos. Para muitos, a exclusão do sistema financeiro americano é uma ameaça mais poderosa do que perder clientes americanos. No mês passado, por exemplo, o Tesouro ameaçou confiscar dólares pagos à Rusal, companhia russa que é uma das maiores produtoras de alumínio do mundo, paralisando-a até o Tesouro a reconsiderar o caso.
A débâcle da Rusal e a decisão do presidente Donald Trump de se retirar do acordo nuclear firmado com o Irã têm despertado temores de que os EUA estejam abusando do seu poder. O que pode levar governos e instituições financeiras estrangeiros a pensarem numa nova rota da tubulação.
Nem todos os acordos em dólar estão sujeitos à jurisdição americana. É possível, por exemplo, realizar grandes pagamentos em dólar em Tóquio, Hong Kong e em outros lugares. Mas neste caso as transações são de menor porte. Além disso, a possibilidade de dólares offshore entrarem e saírem do sistema financeiro americano, se necessário, é vital para sua atração. A liquidez de Hong Kong, por exemplo, é respaldada pela capacidade do HSBC movimentar dólares em Nova York. 
A China está criando seu próprio sistema de pagamentos internacionais baseado na sua própria moeda. Ela pode pedir ao Irã para aceitar o Yuan como pagamento do petróleo que importa. Certamente a saída dos EUA do acordo com o Irã fez crescer os contratos de futuros denominados em Yuan, que a China lançou em Xangai. Do mesmo modo, Rússia e China vêm cada vez mais realizando pagamentos em operações de comércio nas suas próprias moedas, e não em dólar. A Rússia pagou 15% das suas importações de artigos chineses com Yuan, no ano passado, segundo o banco central russo.
Os controles de capital, no caso da China, e a balcanização fiscal na Europa debilitam a possibilidade de suas moedas rivalizarem com o dólar. Mas como a economia chinesa parece destinada a superar a dos Estados Unidos, será estranho se sua moeda continuar sempre atrás. E embora nenhum bloco econômico esteja pronto para se equiparar à posição dos EUA no sistema financeiro, eles podem criar um conjunto de canais financeiros fortes o bastante para sustentar seu comércio com empresas russas que estejam na lista negra ou com um país como o Irã. Ex-secretários do Tesouro levaram a sério esse perigo. “Quanto mais condicionamos o uso do dólar e do nosso sistema financeiro à adesão à política externa dos Estados Unidos, maior é o risco de crescer a migração para outras moedas e outros sistemas financeiros no médio prazo”, afirmou Jacob Lew em 2016.
Comporta. Manter-se afastado da jurisdição americana não é o mesmo que escapar do poder americano. Mesmo que nenhum pagamento atravesse território americano, os EUA ainda podem impor sanções extraterritoriais ou “secundárias”, recusando-se a negociar com uma empresa que transacione com um empresa ou governos incluídos na lista negra. Para atenuar essa ameaça, os governos estrangeiros terão de incentivar bancos, fornecedores e clientes que consigam viver totalmente sem os EUA.
O Banco Delta Asia, por seu lado, sobreviveu à investida dos EUA com ajuda do governo de Macau. E tem agora de convencer o Tesouro a suspender medida que o impede de ter acesso ao sistema financeiro americano. Mas o banco não está completamente desligado do dólar. Em uma das suas maiores agências, foi possível trocar 820 patacas (moeda de Macau) por uma nota de US$ 100 que trazia a assinatura de um ex-secretário do Tesouro. 

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