A covid-19 tem agravado falhas tectônicas na economia mundial que já eram profundas e exposto de forma gritante as divisões e desigualdades de nosso mundo atual. Também tem multiplicado e amplificado as vozes dos que defendem amplas reformas. Quando até o pessoal em Davos faz apelos por uma “reconfiguração global do capitalismo”, não resta dúvida de que há mudanças em andamento.
Há algumas linhas em comum nas novas agendas de política econômica sendo propostas: para preparar a força de trabalho às novas tecnologias, os governos precisam aprimorar a educação e os programas de treinamento e integrá-los melhor aos requerimentos do mercado de trabalho. A proteção social e a previdência social precisam ser melhoradas, especialmente para aqueles com arranjos trabalhistas não convencionais e para os trabalhadores da economia “gig”, ou dos “bicos”.
Em termos mais amplos, o enfraquecimento do poder de barganha dos trabalhadores nas últimas décadas indica a necessidade de novas formas de cooperação e de diálogo social entre empregadores e empregados. É preciso aplicar uma tributação progressiva mais bem planejada para enfrentar a desigualdade de renda cada vez maior.
Combinadas, essas reformas alterariam substancialmente o modo como nossas economias operam, mas sem alterar fundamentalmente a narrativa sobre como as economias de mercado deveriam funcionar. Tampouco representam uma mudança radical para as políticas econômicas. Ainda mais importante, elas ignoram o problema central que precisamos enfrentar: a reorganização da produção.
Nossos problemas econômicos centrais (pobreza, iniquidade, exclusão e insegurança trabalhista) têm inúmeras raízes. Esses problemas, contudo, são reproduzidos e reforçados diariamente ao longo da produção, como efeito colateral imediato das decisões das empresas quanto ao emprego, ao investimento e à inovação.
No jargão dos economistas, essas decisões estão repletas de “externalidades”: têm consequências cujos efeitos transbordam e atingem outras pessoas, firmas e partes da economia. Esses efeitos de transbordamento também incluem o que se pode chamar de as externalidades dos “bons empregos”. “Bons empregos” são aqueles relativamente estáveis, que pagam bem o suficiente para sustentar um padrão de vida razoável e uma poupança, que têm certa segurança de emprego, que garantem condições seguras de trabalho e que oferecem oportunidades de avanço na carreira. As firmas que os geram contribuem para a vitalidade de suas comunidades.
Em contraste, a falta de bons empregos frequentemente traz altos custos políticos e sociais: famílias desmembradas, crime e abuso de entorpecentes, assim como o declínio na confiança no governo, em especialistas e em instituições, a polarização partidária e o nacionalismo populista. Também há claras ineficiências econômicas, uma vez que tecnologias estimuladoras da eficiência ficam restritas a poucas firmas e não se disseminam, contribuindo para um crescimento anêmico dos salários em geral.
A suposição implícita por trás de boa parte de nossa atual mentalidade, assim como a do modelo tradicional do Estado de bem-estar social, é a de que haverá “bons empregos” de classe média disponíveis para todos com a capacitação adequada. Nesse ponto de vista, a estratégia apropriada para fomentar a inclusão é uma que combine investimentos em educação e treinamento, um sistema progressivo de tributação e de transferências e um seguro social contra riscos idiossincráticos como desemprego, doença e incapacitação.
A desigualdade e a insegurança econômica de hoje, no entanto, são problemas estruturais. Tendências seculares na tecnologia e na globalização vêm esvaziando o segmento médio da distribuição de empregos. Os resultados são mais empregos ruins, que não oferecem estabilidade, remuneração suficiente nem avanço na carreira, e um mercado de trabalho permanentemente frágil fora dos grandes centros metropolitanos.
Resolver esses problemas exige uma estratégia diferente, que aborde diretamente a criação de bons empregos. As firmas deveriam arcar com o ônus de internalizar os efeitos de transbordamento econômico e social que causam. Portanto, o setor produtivo precisa estar no cerne da nova estratégia.
Em termos claros, precisamos mudar o que produzimos, como produzimos e quem tem poder de decisão sobre isso. Isso não exige apenas novas políticas, mas também a reconfiguração das que já existem.
Os sistemas nacionais de inovação precisam ser redesenhados de forma a orientar os investimentos a rumos mais favoráveis ao emprego. E políticas para combater as mudanças climáticas, como o Green Deal europeu, precisam estar ligadas explicitamente à criação de empregos em comunidades mais atrasadas nesse aspecto.
Uma nova ordem econômica exige um quid pro quo explícito entre a empresa privada e a autoridade pública. Para prosperar, as empresas precisam de uma força de trabalho capacitada e confiável, de boa infraestrutura, de um ecossistema de fornecedores e colaboradores, de fácil acesso à tecnologia e de um sistema sólido de contratos e direitos à propriedade. A maior parte disso é proporcionada por medidas públicas e coletivas.
Os governos, por sua vez, precisam que as firmas internalizem as várias externalidades que suas decisões sobre mão de obra, investimentos e inovação produzem em suas comunidades e sociedades. E as firmas precisam cumprir seu lado na barganha – não como parte de uma responsabilidade social das empresas, mas como parte de uma estrutura explícita de regulamentação e governança.
Acima de tudo, qualquer nova estratégia precisa abandonar a separação tradicional entre políticas sociais e políticas pró-crescimento. Um maior crescimento econômico requer a disseminação de novas tecnologias e de oportunidades produtivas tanto entre firmas pequenas quanto entre segmentos mais amplos da força de trabalho, em vez do confinamento de seu uso a uma elite diminuta. Além disso, melhores perspectivas de emprego reduzem a desigualdade e insegurança econômica de forma mais eficiente do que a redistribuição fiscal sozinha. Em termos simples, as agendas sociais e de crescimento são exatamente as mesmas. (Tradução de Sabino Ahumada).
Dani Rodrik, professor de economia política internacional na Faculdade de Governo John F. Kennedy, de Harvard.
Stefanie Stantcheva é professora de economia na Harvard University. Copyright: Project Syndicate, 2019
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-contrato-social-na-pos-pandemia.ghtml