Em um canto da sala, o filho mais novo brinca com o boneco Falcon, enquanto o mais velho coloca na vitrola o álbum “Sgt Pepper’s”, dos Beatles. Os pais pedem silêncio: o marido quer assistir a “Perdidos no Espaço”, seu seriado favorito, e a mulher, ver mais um capítulo de “Vale Tudo”.
Falcon foi lançado em 1977, “Sgt Pepper’s” saiu em 1967, “Perdidos” estreou em 1965 e “Vale Tudo” foi ao ar em 1988. Mas a família vive em 2018. Eles são exemplo de um fenômeno cultural e mercadológico que, literalmente, desafia o tempo e tende a ficar mais forte – é a ascensão do “mercado da nostalgia”.
A tendência é mais evidente na produção de conteúdo, como programas de TV e filmes de cinema, mas se estende a outros segmentos, de brinquedos e roupas até alimentos. Em alguns casos, são relançados os produtos originais. Em outros, feitas recriações que levam em conta o apelo de novas tecnologias ou linguagens. Nas duas situações, a ideia é acessar a memória afetiva do público para trazer de volta criações que se provaram populares e deixaram saudades.
“Temos um enorme arsenal à disposição”, afirma Aires Fernandes, diretor de marketing da fabricante de brinquedos Estrela. A empresa lança, por ano, de 200 a 250 produtos diferentes. Entre 10% e
15% deles são relançamentos, diz o executivo.
No ano passado, a companhia comemorou 80 anos com o retorno de um campeão de vendas – o “quarentão” Falcon, adaptação dos G.I. Joe, da americana Hasbro. Os produtos originais permaneceram no mercado durante seis anos, até 1983, e provaram que boneco também era coisa de menino. No primeiro ano, venderam 1 milhão de unidades. Os três modelos relançados seguem os detalhes dos originais.
Já o jogo de tabuleiro Detetive ganhou, em junho, uma versão adaptada ao mundo digital. As pistas para desvendar um crime agora chegam ao jogador por meio de um aplicativo de celular. E as antigas “armas” de brinquedo usadas pelo assassino foram substituídas pela realidade aumentada, uma tecnologia que projeta objetos virtuais sobre cenários reais.
Nos próximos meses, a companhia planeja lançar o Torak, arquirrival do Falcon, e estuda o retorno do carrinho de controle remoto Maximus.
Um dos maiores atrativos do “mercado da nostalgia” é o estímulo que as gerações mais velhas provocam, voluntariamente, nas mais novas. Pais, tios e irmãos mais velhos que tiveram boas experiências no passado influenciam filhos, sobrinhos e irmãos mais novos, engordando o público potencial.
“Para alguns, o conteúdo é um resgate da memória. Para outros, é pura novidade”, diz Polika Teixeira, gerente de marketing do Viva, canal de TV paga voltado à exibição de programas considerados clássicos.
Cerca de 85% do público do Viva, da programadora Globosat, é formado por estudantes e pessoas economicamente ativas, de acordo com pesquisa da agência Studio Ideias. O engajamento na internet dá indícios da participação do público mais jovem, muito ativo nas redes sociais. São mais de 3 milhões de seguidores no Facebook, 370 mil no Instagram e 300 mil no Twitter. “Brincamos muito com memes, o que reforça esse potencial da marca de unir gerações”, diz Polika.
“Vale Tudo”, exibida entre maio de 1988 e janeiro de 1989, ganhou uma reexibição em 2010, quando o Viva foi lançado, e está novamente no ar. A novela teve vários finais diferentes gravados, para evitar o vazamento de quem era o assassino da milionária Odete Roitman, interpretada por Beatriz Segall. Mas o fim permanecerá inalterado, com a vilã sendo morta por Leila, personagem da atriz Cássia Kiss Magro.
Refazer programas de sucesso tem se tornado uma estratégia cada vez mais comum. A Netflix lançou uma versão remodelada de “Perdidos no Espaço”, a série clássica de ficção científica, criada por Irwin Allen e com tema de abertura de John Williams, um recordista do Oscar, com 59 indicações. Nos três primeiros dias após sua estreia, o seriado foi visto por 6,3 milhões de espectadores nos Estados Unidos, o que levou a empresa a confirmar sua segunda temporada. O tom original, de paródia, ganhou ares mais sombrios. Alguns personagens foram bem alterados: o robô, que vivia agitando os braços e repetindo a frase “perigo, Will Robinson”, agora tem origem alienígena e ar ameaçador. E o dr. Smith, um vilão caricato e covarde, virou a dra. Smith, mais dissimulada.
Outros “remakes” estão na fila. Em novembro, a Netflix pretende lançar uma nova versão do desenho animado “She-Ra”, que fez sucesso entre os anos 80 e 90. Para 2019, a empresa planeja uma animação baseada no seriado japonês “Ultraman”. Quem se lembra do original, que estreou em 1966, vai gostar de saber que o protagonista será filho do herói original, o oficial Hayata.
Ainda no campo dos desenhos animados, o Cartoon Network anunciou para 2019 uma nova versão de “ThunderCats”, criação de 1985 dos estúdios Hanna-Barbera. O lançamento segue uma trilha descoberta há algum tempo pelo Cartoon, controlado pela americana Turner Broacasting.
No ano passado, o canal infantil relançou “Ben 10”. “É uma das franquias mais bem-sucedidas do mercado de licenciamento”, diz Cidinha Figueira, diretora de licenciamento da Turner no Brasil. Desde 2006, quando foi lançado o desenho original, Ben 10 rendeu US$ 4,5 bilhões no varejo mundial, com a venda de produtos como brinquedos, cadernos e roupas.
A estreia da série remodelada, em abril do ano passado, fez a audiência do Cartoon aumentar 98% em relação à média do canal, tornando-o o mais visto do país durante 27 meses consecutivos entre crianças de 4 e 11 anos com TV paga em casa, segundo dados da Kantar Ibope Media. No YouTube, o canal oficial do personagem contabiliza mais de 47 milhões de visualizações e 6 milhões de usuários únicos no país. Em fevereiro deste ano, “Ben” 10 fez o percurso da TV paga para a aberta, passando a ser exibido pelo SBT.
O Viva também investe em recriações. Em 2013, produziu quatro episódios do humorístico “Sai de Baixo” (1996-2002), que foram exibidos pelo canal e, na TV aberta, pela Rede Globo. “O sucesso foi tão grande que demos continuidade com outros programas”, diz Polika. Em 2015, o ator Bruno Mazzeo assumiu o papel de Chico Anísio, seu pai, à frente da “Escolinha do Professor Raimundo”, cuja temporada mais recente tem estreia prevista para setembro no Viva e novembro na Globo. No ano passado, “Os Trapalhões” ganharam episódios com novos personagens e a participação de Didi e Dedé – vividos por Renato Aragão e Dedé Santana – da trupe original.
Contentar os fãs nem sempre é tarefa fácil. “Não adianta passar ‘Mary Tyler Moore’ [série exibida entre 1970 e 1977], por exemplo, porque a dublagem original foi perdida em um incêndio e o público não aceita legendas ou novas dublagens”, diz Evê Sobral, diretor de programação da Rede Brasil TV, que tem 80% de sua programação concentrada em reprises.
Para tentar reproduzir o encanto do passado, a RBTB remasteriza muitos programas, com atenção especial ao som. Foi o que a emissora fez com “Nós e o Fantasma” (1968-1970), e a versão televisiva de “Batman” (1966-1968), aquela em o herói ostentava uma barriguinha e cujos golpes eram acompanhados de sinais gráficos como “pow”, “bang” e “zok”.
A RBTV iniciou suas atividades há 11 anos, depois de perceber que havia demanda do público por séries consideradas “cult”, diz Sobral. Mais recentemente, ampliou seu sinal para chegar a mais localidades. A programação inclui seriados como “A Mulher-Maravilha” (1975-1979) e “Planeta dos Macacos” (1974), e desenhos como “Os Cavaleiros do Zodíaco”, que embalaram as crianças na década de 90.
Embora pareça um contrassenso, o “mercado da nostalgia” é estimulado pelas novas tecnologias digitais. “Graças a sites como o YouTube, as novas gerações têm, hoje, mais contato com as coisas do passado que as anteriores”, explica Rebeca de Moraes, diretora da consultoria Aurora. “Antes, quem gostava de uma banda antiga, por exemplo, tinha muita dificuldade para ouvir as gravações.”
A tendência é reforçada por uma sensação de insegurança entre os mais jovens, diz Rebeca. No primeiro trimestre, a faixa etária entre 14 e 24 anos foi a mais atingida pelo desemprego, que aumentou 11,9% nessa camada, para 5,6 milhões de pessoas. Na dúvida do que o futuro reserva, as pessoas estão buscando apoio em um passado conhecido, mesmo que não o tenham vivido pessoalmente.
É algo com que as empresas poderiam aprender mais, afirma Rebeca. Muitas marcas ainda têm medo de acessar o passado por receio de ficar associados a algo “empoeirado”, diz ela. Novas leituras de um produto, no entanto, sempre são possíveis. “A nostalgia remete a algo bom que já foi experimentado e pode ser vivido de novo. É diferente da melancolia, que lembra de coisas que não podem ser repetidas.”
O consumo nostálgico pode ganhar feições difusas, mais baseadas em maneiras de consumir do que em produtos específicos. A indústria do vinil, por exemplo, passa por uma recuperação. Não se espera que os LPs voltem a ocupar o papel que tinham antes dos CDs e, depois, da música digital, mas as vendas estão em alta.
No ano passado, os americanos compraram 14,3 milhões de LPs, um crescimento de 9% frente a 2016 e o equivalente a 8,5% das vendas totais de música nos EUA, incluindo os formatos digitais. Dez anos antes, essa fatia era de 1%. O álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” foi o vinil mais vendido, com 72 mil cópias. No primeiro semestre deste ano, houve novo aumento, de 19,2% em relação ao mesmo período de 2017, com 7,6 milhões de álbuns vendidos, segundo a Nielsen.
Até na maneira como as pessoas se alimentam a busca pelo passado é visível, afirma Rebeca. Redes de bolos caseiros explodiram em algumas cidades, na tentativa de reproduzir os quitutes das vovós. Se o forno de micro-ondas e a comida congelada se popularizaram nas cozinhas brasileiras tempos atrás, agora a tentativa é de voltar à comida caseira.
Com cada vez mais produtos disputando a atenção do consumidor, é difícil dizer quais serão os apelos nostálgicos do futuro. A TV aberta, por exemplo, ganhou a companhia da TV paga, dos serviços de streaming e dos sites de vídeos. Isso sem falar nos serviços de streaming de música, nas redes sociais e nos jogos on-line, que disputam o tempo do público. Mas isso não quer dizer que as pessoas não vão mais compartilhar as saudades do passado. “A previsão é que surgirão bolhas particulares de interesse”, diz Rebeca, da Aurora. “A noção de nostalgia não vai se dissolver, mas ficará diferente.”
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