Nos tempos da Guerra Fria

Por  Sidney Ferreira Leite

O final do mês de setembro de 2013 marcou um capítulo importante na grave crise que atinge a Síria há aproximadamente três anos. De fato, a violenta guerra civil, composta pelos elementos mais cruentos do Oriente Médio, notadamente a intolerância e o fundamentalismo religioso envolvendo xiitas, sunitas e alauitas (um segmento do xiitismo) alcançou cenários ainda mais dramáticos.

Urge sublinhar que a guerra civil em questão envolve direta e indiretamente importantes atores da região, como a Arábia Saudita, que apoia as forças da oposição que querem derrubar o governo do presidente Bashar Al-Assad e, o Irã que envia soldados para manter o seu aliado no poder; recentemente o conflito alcançou ainda mais repercussão com os ataques de armas químicas contra a população civil, na periferia de Damasco, no início do mês de setembro. O ataque ocorrido no mês de setembro deixou centenas de mortos. Imagens mostrando crianças intoxicadas correram por todos os cantos do Planeta imediatamente, por intermédio da mídia tradicional e pelas mídias sociais digitais, e abriram novos e tensos capítulos na crise Síria.

O episódio recebeu repúdio geral e passou a envolver os principais atores protagonistas das Relações Internacionais, especialmente, dos Estados Unidos, quando o presidente Barack Obama apontou o governo da Síria de responsável por usar armas químicas contra civis, o acusou de ultrapassar a linha vermelha da tolerância e sentenciou que a Síria seria punida com um ataque liderado pelo próprio Estados Unidos. Cheiro de pólvora no ar. A guerra parecia iminente.

Todavia, a diplomacia fez valer o seu substrato de racionalidade e moderação. Nesse contexto ganhou destaque o governo da Rússia, aliado histórico da Syria. A cruenta guerra civil cessou por algumas horas, cedendo à negociação diplomática. Face à determinação dos Estados Unidos de liderar um ataque contra Assad, a Rússia, passou a negociar uma solução diplomática que teria como base a entrega do arsenal químico sírio a fim de evitar a anunciada intervenção americana. Proposta vitoriosa e aprovada pela ONU.

Nessa senda, o secretário-geral ONU, Ban Ki-moon, descreveu a decisão como “histórica”. Ele pediu que o governo síria pusesse em prática a resolução “fielmente e sem atrasos”, e anunciou uma data provisória de meados de novembro para uma nova conferência de paz em Genebra.

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, por sua vez, declarou que o acordo entre os membros do Conselho sobre a questão foi uma “enorme vitória para a comunidade internacional”. Como sublinhado acima, os Estados Unidos haviam insistido por uma ação militar contra as forças armadas do presidente sírio, Bashar Al-Assad, mas a Rússia não concordou. Reagindo à votação, o embaixador sírio junto à ONU, Bashar Jaafari, disse que a resolução cobria a maior parte das preocupações de Damasco. Mas ele ressaltou que países que apoiam os rebeldes sírios também devem respeitar o documento aprovado.

Tentativas anteriores de uma resolução não se concretizaram devido a divergências entre a Rússia e os Estados Unidos sobre como lidar com a crise na Síria. O secretário de Estado americano John Kerry afirmou que a ONU demonstrou que “a diplomacia pode ser tão poderosa que pode pacificamente desarmar as piores armas de guerra”. O chanceler russo, Sergei Lavrov elogiou a medida, e disse que Moscou estava pronta para participar de “todas as operações” na Síria. O texto aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU contém duas exigências obrigatórias: a Síria deve abandonar o seu arsenal de armas, e os especialistas em armas químicas recebam acesso irrestrito.

O episódio é rico em significados, possui muitas nuances e consequências. Nessa perspectiva um fato parece ter passado despercebido dos analistas: a aparente solução foi conquistada dentro de quadros de negociação que remetem ao período que os estudiosos das relações internacionais denominaram Guerra Fria.

Há muitas definições para a Guerra Fria. A mais conhecida é, sem dúvida, a elaborada por Raymond Aron, cientista politico francês: “Guerra Fria, paz improvável, Guerra impossível”. Em outras palavras, os embates entre as duas superpotências (EUA e URSS) não se transformariam em um confronto direto, pois resultaria em uma guerra total – isso significaria a aniquilação não apenas das duas superpotências, mas do próprio Planeta. Todavia, o período de 1947 a 1991 foi caracterizado por guerras localizadas, apoiadas ou protagonizadas por uma das superpotências. Essas eclodiram em diversas regiões, do Vietnam ao Afeganistão. Na prática, a Guerra Fria foi um conflito de ordem política, militar, tecnológica, econômica, social e ideológica entre os dois Estados. Nesse contexto o sistema internacional funcionava dentro de uma lógica bipolar.

A rivalidade entre os EUA e a URSS tinha origem na incompatibilidade entre as ideologias defendidas por cada um, uma vez que cada uma possuía um sistema político distinto e organizava sua economia de modo diferente da outra. Os Estados Unidos defendiam o capitalismo, o seu modelo de democracia, princípios como a defesa da propriedade privada e a livre iniciativa, enquanto a União Soviética defendia o socialismo e princípios como o fim da propriedade privada, a igualdade econômica e um Estado forte capaz de garantir as necessidades básicas de todos os cidadãos.

Dada a impossibilidade da resolução do confronto pela via tradicional da guerra aberta e direta, as duas nações passaram a disputar poder de influência política, econômica e ideológica em todo o mundo. A Guerra Fria terminou por completo com a ruína do mundo socialista, uma vez que a URSS estava destruída economicamente devido aos gastos com armamentos e com a queda do Muro de Berlim em 1989.

As mudanças nas últimas duas décadas não cessaram de acontecer. O sistema internacional saiu de uma ordem bipolar para a ordem das polaridades indefinidas. No entanto, merece destaque especial a forte e rápida ascensão da Rússia no sistema internacional. Depois de um período marcado pelo alinhamento com as posições do Ocidente, na época em que o país foi presidido pela figura controversa de Boris Yeltsin; a Rússia sob a era Putin vem demonstrando um enorme poder de recuperação do seu papel no ambiente politico internacional.

O recente episódio da Síria é apenas mais um exemplo, dessa retomada de posicionamento estratégico como potência e protagonista dos temas mais relevantes da agenda internacional. O chanceler russo, Sergei Lavrov mostrou-se, ao mesmo tempo, firme e engenhoso nas negociações com o seu colega John Kerry. Não temos acesso às conversações entre os governos da Rússia e da Síria, mas é fato notório que a liderança russa a partir de agora se apresenta, não apenas como capaz de vetar propostas do Ocidente, mas, um ator que será protagonista das grandes questões do hard power.  Nesse aspecto, como negar, por exemplo, que o posicionamento relativo da Rússia, após a votação do Conselho de Segurança, está muito mais próximo da URSS, do que da Rússia do presidente etílico Boris Yeltsin. O urso está de volta, como nos tempos da Guerra Fria? Mas, essa é uma outra questão.

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