Jovens chineses preferem ‘ficar deitado’ a se matar de trabalhar

Por James Kynge, Valor 

O contrato social da China está se esgarçando, e uma canção apagada da internet do país capta nitidamente o problema. “Ficar deitadão é bom, ficar deitadão é maravilhoso, ficar deitadão é correto, deite, porque assim você não cai”, canta Zhang Xinmin em chinês, deitado num sofá tocando um violão. 

“Ficar deitadão”, uma tendência entre jovens chineses que optam por não assumir empregos estressantes, representa a antítese de um modelo de desenvolvimento que gerou crescimento extraordinário ao longo de quarenta anos, ao mobilizar o esforço máximo de sua população. 

Pequim está mais do que um pouco perturbado. “Nesta era de turbulência, não existe ficar deitadão e esperar a prosperidade chegar”, disse Wu Qian, porta-voz do governo nesta semana. “Só existe a glória da luta e do esforço. Jovens, vamos lá!” 

Preocupações desse tipo estão por trás de várias iniciativas destinadas a galvanizar as pessoas e a estimular as famílias a terem mais filhos. Essencial entre essas medidas foi a decisão, na semana passada, de reprimir o ensino particular pós- escolar, um setor que movimenta US$ 100 bilhões e que provoca estresse nas crianças ao mesmo tempo em que sobrecarrega as finanças de seus pais. 

Novas regras emitidas pelo conselho de ministros, ou Gabinete, proíbe ensino particular com fins lucrativos sobre os principais temas escolares. A notícia caiu como um raio, deprimindo os preços das ações de empresas líderes do setor, com ações negociadas nos EUA, TAL Education, New Oriental e Gaotu Techedu. 

A aversão do líder chinês, Xi Jinping, ao ensino particular pós-escolar, vinha se anunciando. Em março, ele criticou a “confusão” no setor e a qualificou de “doença crônica muito difícil de curar”. Mas o fato de que Pequim estar disposto a desfechar o que poderia ser um golpe mortal sobre um setor que emprega centenas de milhares de pessoas revela o grau de seriedade com que encara o problema. 

Para dezenas de milhões de pessoas de classe média nas grandes cidades chinesas, a vida se tornou uma roda de hamster de esforço crescente e recompensa decrescente. Um turbilhão de gastos com moradia, educação, serviços de saúde e outras despesas têm subido mais rápido do que a média dos salários, o que passa para muitas pessoas a sensação de correr sem parar e continuar no mesmo lugar. 

“As últimas medidas para reprimir as empresas de aulas de reforço fora da escola estão de acordo com o deslocamento do foco para a qualidade de vida da população chinesa”, disse Yu Jie, pesquisador sênior da Chatham House, think-tank com sede em Londres. 

Segundo dados da Sociedade Chinesa de Educação, o custo médio anual de aulas particulares para um aluno é de mais de 12 mil yuans (US$ 1.860), o que é superior ao salário médio mensal em um país com um Produto Interno Bruto (PIB) per capita de US$ 10.216 em 2019. Algumas famílias, no entanto, gastam até 300 mil yuans por ano com aulas de reforço em escolas reconhecidas de professores famosos. 

Esse fardo costuma ser exacerbado pela necessidade de pagar babás enquanto os pais trabalham longas horas em seus escritórios e enfrentam o trânsito confuso da hora do rush. Os pais que optam por morar na área de abrangência de escolas muito procuradas em cidades como Xangai pagam quantias exorbitantes pelo privilégio. 

“Pagamos mais de 3 milhões de yuans [US$ 465.116] pela nossa casa”, diz Yang Liu, que sai de sua casa em Xangai para trabalhar às 6h30 e só volta pouco antes de sua filha de seis anos ir para a cama, às 21h. 

Mesmo que oficialmente os jardins de infância sejam desencorajados a pedir trabalhos para depois das aulas, sua filha recebe lição de casa para todos os dias da semana. Ela precisa aprender caracteres chineses e palavras em inglês, memorizar poemas, praticar a leitura e tocar violino. 

O estresse que esse estilo de vida passa para os jovens solteiros tem um impacto que vai além de induzir alguns deles a “ficarem deitadões”. As estatísticas mostram que os casais têm adiado o casamento para mais tarde e a taxa de natalidade caiu vertiginosamente. Em 2020, houve apenas 12 milhões de nascimentos, em comparação aos 14,65 milhões de um ano antes. 

Como o número de mulheres em idade fértil (22 a 35 anos) deve cair em mais de 30% na próxima década, alguns especialistas preveem que o número de nascimentos pode diminuir para menos de 10 milhões por ano e a taxa de fertilidade da China pode se tornar a mais baixa do mundo. 

A realidade da vida diária para a classe média chinesa mostra uma imagem diferente daquela oferecida pelo aumento inexorável dos números do PIB. O custo de vida nas grandes cidades subiu drasticamente, o que encolheu a renda disponível das pessoas. 

Alicia García Herrero, economista-chefe para a região Ásia-Pacífico no banco de investimento Natixis, coloca isso de forma sucinta: “O grosso da população da China vive uma situação cada vez pior à medida que a acessibilidade à moradia continua a piorar e o acesso à educação e à saúde se torna cada vez mais caro.” 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/08/08/ft-jovens-chineses-preferem-ficar-deitado-a-se-matar-de-trabalhar-como-os-pais.ghtml

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