Alarmado com crescentes ameaças de segurança e risco de guerra no Indo-Pacífico o Japão buscará comprar centenas de mísseis de cruzeiro Tomahawk, fabricados nos Estados Unidos, como parte de um grande investimento em defesa sem precedentes após o fim da 2.ª Guerra, afirmaram autoridades japonesas e americanas.
A compra de mísseis ampliaria a capacidade de ataques de longo alcance do Japão e marcaria um rompimento impressionante com uma longa tradição de abster-se de possuir armas ofensivas. E melhoraria a capacidade de dissuasão convencional do Japão em um momento em que a China empreende uma enorme modernização em suas Forças Armadas e a Coreia do Norte segue a todo vapor com seu programa nuclear.
O Japão avançará este mês com a decisão de adquirir mísseis Tomahawk como parte de sua adoção de novas estratégias de segurança nacional e defesa, juntamente com um grande salto no orçamento de defesa — até a meta da Otan do equivalente a 2% do produto interno bruto do país, o que tornaria o gasto militar japonês o terceiro maior do mundo. Juntos, esses passos sinalizam um Japão que se movimenta para abandonar suas antigas amarras pacifistas.
“O Japão quis limitar seu gasto em defesa e tentar não adquirir capacidades de contra-ataque. Mas a situação que nos cerca não nos permite isso”, afirmou Ichiro Fujisaki, ex-embaixador japonês nos EUA. “Muitos pensaram que (a guerra) fosse um problema do século 20, mas agora nos encontramos novamente com ela.”
A aquisição de mísseis e o crescente orçamento em defesa têm apoio do governo Biden, que considera o Japão um parceiro fundamental no oeste do Pacífico. Autoridades veem o aprofundamento na relação com o Japão como parte de uma estratégia mais ampla de cooperação regional para melhorar a segurança, incluindo um acordo envolvendo EUA e Reino Unido para auxiliar a Austrália a desenvolver submarinos nucleares e os EUA suspenderem limites sobre a construção de mísseis balísticos na Coreia do Sul.
“Os EUA não estão dando passos apenas unilaterais, estão buscando, em vez disso, empoderar aliados e parceiros de maneiras profundamente significativas e que amplificam nossas capacidades na região”, afirmou uma autoridade americana que, como várias outras fontes entrevistadas para a elaboração desta reportagem, falou sob condição de anonimato para discutir planos ainda não revelados publicamente.
A decisão de comprar centenas de Tomahawks — entre 400 e 500, segundo alguns relatos — fará China e Coreia do Norte tomarem nota da seriedade do Japão em sua autodefesa; assim como do fato de a aliança bilateral entre EUA e Japão, possivelmente o pacto militar mais significativo na região, estar se fortalecendo em face às ameaças de Pequim e Pyongyang, afirmaram autoridades.
“A introdução desse sistema simbolizará uma grande mudança positiva em relação à capacidade de contra-ataques”, afirmou uma autoridade japonesa. Os mísseis Tomahawk, capazes de atingir alvos a mais de 1,6 mil quilômetros de distância, colocariam dentro do alcance do Japão posições militares dentro da China continental.
Enquanto o Japão se afastou gradualmente de políticas orientadas para a autodefesa — uma reinterpretação da Constituição, em 2014, permitiu ação militar no caso de uma ataque contra um aliado — as mudanças foram mínimas. Até agora.
A invasão russa à Ucrânia, em fevereiro, foi um fator “absolutamente” fundamental na criação do ambiente político que permitiu ao governante Partido Liberal Democrata avançar com uma agenda de segurança vigorosa apesar do sentimento público antimilitarista, afirmou uma segunda autoridade japonesa.
Pesquisas mostram que, depois da invasão à Ucrânia, o apoio do público ao que o governo japonês classifica como capacidade de “contra-ataque” cresceu claramente, de 37% em julho de 2020, para mais de 60% em junho.
Para os japoneses, a guerra na Ucrânia fez uma invasão chinesa a Taiwan parecer muito mais possível, o que aprofundou a preocupação do público a respeito da prontidão militar japonesa na hipótese de um conflito regional.
Em agosto, após a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi (democrata da Califórnia), visitar Taipei, Pequim demonstrou indignação e realizou agressivos exercícios militares nas proximidades de Taiwan, que incluíram o lançamento de um míssil balístico que caiu dentro da zona econômica exclusiva do Japão. E ao longo do ano recente, a Coreia do Norte testou uma quantidade sem precedentes de mísseis balísticos conforme desenvolve seu programa de armas nucleares, chegando a disparar um projétil sobre o Japão.
“Isso representa uma evolução significativa no pensamento estratégico do Japão”, afirmou Jeffrey Hornung, especialista em segurança japonesa e política externa do instituto de análise Rand Corporation, com base em Washington. “O comportamento da China ao longo dos últimos dez anos realmente colocou o Japão em uma trajetória de pensar mais seriamente a respeito de sua defesa.”
O primeiro-ministro Fumio Kishida avança com uma agenda mais agressiva em política externa desde fevereiro. No fim do mês passado, ele deu o incomum passo de afirmar que pretendia aumentar o orçamento em defesa para o equivalente a 2% do PIB até 2027 — uma manobra considerada controvertida e irreal havia muito. Se ele conseguir ir adiante com seu objetivo, daqui a três anos o Japão terá provavelmente o terceiro maior orçamento em defesa no mundo, depois de EUA e China.
O Japão considera os mísseis Tomahawk um armamento “provisório”, que poderia ser usado nos próximos cinco anos enquanto o país trabalha para ampliar o alcance dos mísseis de cruzeiro Type 12 que fabrica, para que eles tenham capacidade similar de atacar alvos militares terrestres à distância. Mas esse projeto deverá demorar dez anos, afirmam especialistas.
O que são os mísseis Tomahawks
O Japão planeja reconfigurar os sistemas de lançamento vertical de seus destróieres para acomodar os Tomahawks, afirmaram autoridades. Os Tomahawks foram a principal escolha porque são “fogo de longo alcance, testados em combate”, afirmou a primeira autoridade japonesa citada na reportagem.
Os Mísseis Tomahawk de Ataque Terrestre, ou TLAMs, são fabricados pela Raytheon. Eles foram usados notoriamente na Guerra do Golfo, em 1991, demonstrando que eram capazes de atingir alvos com precisão a longa distância. Eles dariam ao Japão capacidade de atacar bases dentro da China e da Coreia do Norte, ao contrário de seu atual arsenal balístico, capaz apenas de alvejar invasores mais próximos do território japonês.
Possuir mísseis Tomahawk “beneficiaria muito” a dissuasão convencional do Japão, afirmou o almirante aposentado Phil Davidson, ex-comandante dos EUA no Indo-Pacífico. “Você tem de ter alguma capacidade ofensiva”, afirmou Davidson, que se aposentou no ano passado. “Você não pode ganhar a Copa do Mundo sem fazer gol, não pode simplesmente jogar na defesa o tempo todo. Para você ter capacidade de dissuasão, seu adversário tem de sentir que está em risco.”
Os benefícios dos mísseis Tomahawk também poderiam fortalecer parceiros na região, afirmou Christopher Johnstone, diretor de análise sobre Japão no Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais. “Um Japão capaz de contra-atacar por conta própria colabora significativamente para a dissuasão no Leste da Ásia”.
Japão e EUA já colaboram proximamente em tecnologias militares, notaram ex-autoridades. Os japoneses operam caças de combate F-35 e usam o sistema Aegis de mísseis de defesa antiaérea, ambos fabricados pela empresa americana Lockheed Martin. Os países organizam conjuntamente exercícios militares balísticos de defesa no mar, incluindo um bem-sucedido exercício realizado no mês passado, nas proximidades do Havaí.
Autoridades japonesas afirmam que a aquisição de mísseis Tomahawk também aprofundará a confiança dos EUA na determinação do Japão e sua capacidade de ser responsável por sua própria defesa.
“Estamos apoiando nossa intenção com orçamento e estratégia de segurança”, afirmou a segunda autoridade japonesa. “Isso deverá elevar a confiança dos americanos na capacidade do Japão. Esse tipo de confiança é importante para a aliança.”
Até hoje, apenas o Reino Unido pôde comprar mísseis Tomahawk, notou Hornung, do instituto Rand. Os EUA venderem os mísseis para o Japão “manda uma mensagem de que você está entre nossos aliados mais dignos de confiança”, afirmou ele.
A China se eriçou com a mudança no Japão. Em um comunicado, este mês, a porta-voz do ministério chinês de Relações Exteriores, Mao Ning, classificou os planos japoneses como um desdobramento “muito perigoso”.
“O Japão precisa refletir sinceramente a respeito de seu histórico de agressão, sobre as preocupações de segurança de vizinhos asiáticos, agir prudentemente no campo da segurança militar e fazer mais para favorecer a paz e a estabilidade regional”, afirmou Mao.
Em maio, o conselheiro de segurança nacional do Japão, Takeo Akiba, reuniu-se em Washington com seu homólogo na Casa Branca, Jake Sullivan, e levantou a possibilidade de uma compra de mísseis Tomahawk, de acordo com pessoas cientes do assunto. Sullivan, afirmaram as fontes, foi receptivo. “Iniciaremos um processo de avaliação”, disse ele a Akiba, de acordo com os relatos, “e ficaremos em contato”.
Tóquio ainda não fez uma solicitação formal para comprar os armamentos, afirmaram autoridades. O governo japonês ainda é sensível ao sentimento antiguerra em seu país e define os armamentos firmemente em termos de autodefesa. “São defensivo-ofensivos, não ofensivo-defensivos”, afirmou a segunda autoridade. “Ainda consideramos defensivos.”
Contudo, reconheceu a autoridade, esse movimento é bastante extraordinário. “Tomahawks significam muito”.
O Japão foi o primeiro país asiático a juntar-se ao Ocidente na imposição de sanções contra a Rússia em razão de sua invasão, o que levou Moscou a classificar Tóquio como um governo “não amigável” e aumentar sua atividade militar na vizinhança.
Autoridades em Tóquio viram como o apoio da Otan a Kiev aumentou depois que os ucranianos demonstraram determinação em lutar em face a enormes dificuldades, afirmou Johnstone, que até junho foi diretor de políticas para o Leste da Ásia na Casa Branca. “Eles concluíram que a melhor maneira de garantir que os EUA e outros países estejam do seu lado em uma crise era mostrar que investem em sua própria defesa e estão preparados para lutar. Esta é a lição central da guerra na Ucrânia para o Japão.”
De fato, os japoneses estão posicionados para uma marcante reviravolta em sua postura em defesa de muitas maneiras além de novos equipamentos e maior gasto militar. Este mês, espera-se ainda que o Ministério da Defesa anuncie um aumento em sua equipe de cibersegurança para 20 mil integrantes até 2027, dos atuais 800 membros, aparelhando o governo para suprir grandes lapsos em capacidades de segurança digital.
O Japão também está considerando facilitar para suas Forças de Autodefesa usar portos e aeroportos civis em tempos de paz, mais um reflexo de suas preocupações com a prontidão em caso de conflito. /