Guerra na Ucrânia divide o mundo em dois blocos

Grandes marcos nem sempre são o momento-chave de uma transformação, mas o ponto em que a história diz que tal mudança não pode mais ser ignorada. O dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, 24 de fevereiro, marcará o momento em que o mundo se dividiu em blocos. Seja qual for o resultado da guerra de Vladimir Putin, a geopolítica agora está dividida e entre o Ocidente e a Eurásia sino-russa. A maioria dos demais está entre os dois blocos, incluindo a Índia, o maior país em cima do muro.

Num mundo mais calmo, os blocos opositores se acomodariam em algum tipo de coexistência, ao estilo da Guerra Fria. Tal estabilidade ainda pode levar tempo para emergir. O curto prazo ainda estará repleto de incertezas. As dúvidas que estão surgindo agora são condizentes com uma grande transformação. Estamos de volta a uma era nuclear? A globalização entrou em marcha a ré? A cooperação quanto às mudanças climáticas não está mais no cardápio agora? Será que o sistema da democracia conseguirá ser mais competitivo que o da autocracia? Até pouco tempo, a maioria dos ocidentais pensava que sabia as respostas. 

É apropriado que Putin, cujo desprezo pelo Ocidente se tornou sua força-motriz, tenha sido quem fechou as cortinas, encerrando a era anterior. Também é irônico. Estrategistas ocidentais mostravam certa tendência a descartar a Rússia, vendo-a como potência em declínio. Mas essa perda de status impôs a Moscou um senso de urgência em comparação à China, que parecia satisfeita em dar tempo ao tempo. A dúvida mais óbvia é qual desses dois países ditará o ritmo. 

A resposta pode ser nenhum deles. Para surpresa de muitos, Joe Biden se transformou num guerreiro da liberdade, ao estilo Ronald Reagan. O discurso de Biden em Varsóvia chamou a atenção pela implicação, fora do roteiro, de que Putin deveria sair do poder. Mas suas declarações formais também foram significativas. Estamos numa batalha entre autocracia e democracia, disse Biden. “Devemos nos preparar para uma longa luta à frente.” 

O objetivo não declarado dos EUA é a troca de regime na Rússia. Das três grandes potências militares, a China parece ser a mais apegada ao status quo. Nada do que Xi Jinping disse ou fez desde a invasão da Ucrânia se compara ao desafio lançado por Biden. Putin recuou em seus objetivos de guerra, que agora consistem em controlar uma fatia da Ucrânia e na neutralidade ucraniana. 

A incógnita inesperada, portanto, são os EUA de Biden. Em algum momento, Volodymyr Zelensky, líder da Ucrânia, colocará à prova a profundidade da retórica do presidente dos EUA. O Ocidente insiste que só Zelensky pode decidir o que é aceitável. Essa é metade da história. A outra é que a suspensão das sanções dos EUA é improvável enquanto Putin estiver no poder. Sem isso, qualquer coisa representaria um recuo. Nas palavras de Biden, as sanções são “um novo tipo de manobra política na economia, com o poder de infligir danos que rivalizam com o poderio militar”. 

A implicação é que as sanções estarão a serviço da luta pela democracia. A Rússia, 11a maior economia do mundo, em breve não estará nem entre as 20 maiores. “A escuridão que impulsiona a autocracia não é páreo para a chama da liberdade”, disse Biden.

Essa é a nova bipolaridade mundial. A Putin cabe a infame distinção de ser a “parteira” dessa bipolaridade; a Biden, o papel de definir seus termos. Três áreas são as mais óbvias. A primeira é econômica. Antes da invasão da Ucrânia, havia especulações sobre se alguma moeda, incluindo o yuan chinês, poderia substituir o dólar. 

A maioria dos economistas crê que uma perda de primazia do dólar é improvável no futuro próximo. Muito dependerá dos planos de Washington. Os EUA mostraram seu notável poder de impor um bloqueio a uma grande economia e de atingir sua elite global. Outras elites nacionais, que também contam com cleptocratas ocidentalizados em suas fileiras, agora buscam planos alternativos. 

Governos de países emergentes observarão como o Ocidente lidará com as reparações dos danos da guerra na Ucrânia. Biden pode confiscar parte ou todas as reservas cambiais da Rússia para reconstruir o país. Ele abriu precedente no início do ano quando os EUA apreenderam metade das modestas reservas do Afeganistão. Os ativos congelados da Rússia superam US$ 300 bilhões. Se os EUA fizerem o mesmo com Moscou, isso pode gerar uma saída do dólar. 

A segunda preocupação é uma corrida armamentista global. Antes da invasão de Putin, China e Rússia já vinham modernizando seus sistemas nucleares, com mísseis hipersônicos. Os EUA também reforçarão seus gastos militares, que podem chegar a 5% do PIB – um aumento de 25%. A maioria dos países europeus não precisa mais ser pressionada para cumprir o compromisso da Otan de gastar 2% do PIB. A proliferação se tornará uma dor de cabeça. 

Uma terceira medida é ideológica. A resposta mais surpreendente à agressão de Putin foi a intensidade da reação pública do Ocidente. Se ela vai durar, é uma questão em aberto. O recente avanço de Marine Le Pen, de extrema direita, nas pesquisas para a eleição presidencial da França é prenúncio de fragilidades na democracia. Outro desses prenúncios é a revanche planejada por Donald Trump para 2024 contra Biden. Trump e Le Pen apresentariam um Ocidente muito diferente daquele defendido por Biden e Emmanuel Macron. Uma nova era está, sem dúvida, sobre nós. Mas a determinação do Ocidente é algo que ainda não está definido. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/04/07/guerra-na-ucrania-divide-o-mundo-em-dois-blocos.ghtml

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