EUA e China rumam para uma nova Guerra Fria

 “De Estetino, no Báltico, até Trieste, no Adriático, uma ‘cortina de ferro’ desceu sobre o continente.” O discurso de Winston Churchill em Fulton, Missouri, em março de 1946 é recordado como um momento-chave do início da Guerra Fria. 

Caso os historiadores do futuro alguma vez procurem por um discurso que tenha marcado o início de uma segunda Guerra Fria, desta vez entre EUA e China, eles podem indicar o proferido por Mike Pence no Hudson Institute, em Washington, em outubro de 2018. 

“A China não quer nada menos do que empurrar os Estados Unidos para fora do Pacífico Ocidental […] Mas eles não conseguirão”, declarou o vice-presidente. “Não seremos intimidados e não baixaremos a cabeça.” Referindo-se ao sistema político da China, Pence afirmou: “Um país que oprime a sua própria população raramente para por aí.” 

Para os que estudaram a primeira Guerra Fria, entre EUA e União Soviética, parte disso soou assustadoramente familiar. Mais uma vez, os EUA se deparam com uma superpotência rival, só que desta vez o palco principal é o Pacífico Ocidental, em vez da Europa Central. E, mais uma vez, o conflito está sendo retratado como sendo entre o mundo livre e uma ditadura. Para aumentar a sensação de semelhança, a República Popular da China, assim como a extinta União Soviética, é governada por um partido comunista. 

Nos últimos meses, a deterioração nas relações entre EUA e China acelerou-se rapidamente, tendo como pano de fundo a campanha eleitoral febril nos EUA. As tensões militares no Pacífico vêm aumentando. Autoridades taiwanesas disseram que as manobras militares chinesas em setembro dentro de sua zona de defesa aérea foram a maior ameaça à sua segurança desde que Pequim lançou mísseis sobre as águas em torno à ilha, em 1996. Os EUA têm o compromisso de ajudar o país a se defender. 

Os EUA têm agido agressivamente para impedir que empresas de tecnologia chinesas, como TikTok e Huawei, ampliem suas operações internacionais ou comprem chips de computador feitos nos EUA. China e EUA até entraram numa onda “olho por olho” de expulsão de jornalistas. 

Além disso, o coronavírus, originado na China, devastou a economia mundial e provocou mais de 200 mil mortes nos EUA. O presidente Donald Trump, que deixou o hospital ontem após 3 dias internado por causa da covid-19, tem deixado claro que considera o governo da China diretamente responsável pela pandemia. 

Em outro discurso beligerante que provavelmente será lembrado por historiadores, o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, fez um alerta em julho, dizendo que os 50 anos de engajamento com a China haviam sido um erro. 

 “Se não agirmos agora, no fim, o [Partido Comunista chinês] corroerá nossas liberdades e subverterá a ordem baseada em leis que nossas sociedades livres trabalharam tão duramente para construir”, disse em discurso na Califórnia, na biblioteca e museu presidencial de Richard Nixon, o presidente que retomou as relações com Pequim durante a Guerra Fria. “O velho paradigma do engajamento cego com a China simplesmente não dará resultado. Precisamos deixar de segui-lo. Não podemos voltar a ele.” 

Nova incerteza: Joseph Nye, professor da Universidade Harvard e ex-funcionário do Pentágono, diz que as relações sino-americanas encontram-se “no ponto mais baixo em 50 anos”. 

Há até mesmo o medo de que o mundo, como na Guerra Fria, possa ficar cada vez mais dividido em dois blocos, um voltado para Washington e outro, a Pequim. Isso pode parecer implausível no mundo das cadeias de produção globalizadas. Ma,s no setor de tecnologia, em especial, há sinais de que isso já começa a ocorrer. 

Como mostra o caso da Huawei, os EUA estão pressionando seus aliados para que cortem os laços tecnológicos com a China. Em alguns casos, como no Reino Unido e, até certo ponto, na Alemanha, isso vem funcionando. Mas a China também vem construindo sua própria rede global de influência, por meio do comércio e da Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI, na sigla em inglês, a Nova Rota da Seda), que envolve créditos e investimentos de até US$ 1 trilhão no desenvolvimento de infraestrutura fora da China. 

Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos EUA que arquitetou a reaproximação entre EUA e China nos anos 70, disse em 2019 que Pequim e Washington estavam no início “de uma Guerra Fria”. 

Foi a crescente força tecnológica da China que dominou as atenções dos EUA neste ano, mas sua capacidade militar também alimenta preocupações cada vez maiores. O rápido avanço militar da China alterou o equilíbrio de poder entre Pequim e Washington. A Marinha chinesa agora tem mais navios do que a dos EUA, e todos estão concentrados na região do Pacífico Ocidental. A China desenvolveu ainda uma variedade formidável de mísseis e satélites militares, que podem ameaçar os porta- aviões americanos e interromper as comunicações militares dos EUA. 

Em recente artigo, Michèle Flournoy, apontada como possível secretária da Defesa dos EUA caso o democrata Joe Biden vença a eleição presidencial, mostrou preocupação de que as “perigosas novas incertezas sobre a capacidade dos EUA de controlar várias ações chinesas […] possam ser um convite para os líderes chineses assumirem riscos”. “Eles poderiam concluir que deveriam avançar sobre Taiwan sem mais demora.” 

A recomendação de Flourney é que os EUA deveriam fortalecer a sua capacidade militar para recuperar o fator de dissuasão. O fato de uma destacada democrata assumir essa posição aponta para um importante aspecto na nova rivalidade EUA- China: ela não desaparecerá se Trump perder a Casa Branca na eleição presidencial. 

Não há dúvida de que o atual presidente dos EUA usa uma linguagem muito mais confrontadora em relação à China (e à maioria dos países, na verdade) do que qualquer um de seus antecessores. O foco específico do presidente no déficit comercial dos EUA com a China e as suas políticas protecionistas também são distintas. Mas Trump pode ter ajudado a trazer uma mudança permanente na opinião ortodoxa em Washington. O historiador econômico Daniel Yergin destaca que “embora democratas e republicanos dificilmente consigam concordar em algo hoje em dia em Washington, uma coisa em que estão de acordo é que a China é um competidor global e que os dois países estão em uma corrida tecnológica.” 

Abordagem de Biden para a China daria mais ênfase às alianças dos EUA do que Trump vem dando e provavelmente faria menos uso de tarifas comerciais. Os democratas também procurariam trabalhar com a China em relação a mudanças climáticas. Mas um governo Biden não alteraria a premissa básica da política de Trump, de que a China agora é um adversário. 

Em Pequim, esse avanço em direção a uma “mentalidade de Guerra Fria” é condenado – e muitas vezes atribuído unicamente à suposta recusa dos EUA de aceitarem um mundo multipolar. Para eles, provavelmente existe uma determinação suprapartidária em Washington para manter o status dos EUA como “número 1”. O ponto de vista chinês, porém, ignora até que ponto foi a própria China que contribuiu para a emergência de uma segunda Guerra Fria. 

Desde que Xi Jinping subiu ao poder, em 2012, a China se tornou mais assertiva no exterior e autoritária internamente. A construção de bases militares no Mar do Sul da China é vista em Washington como um desafio direto ao poderio americano no Pacífico. Mudanças constitucionais para permitir a Xi governar por décadas, a repressão em Hong Kong e as prisões em massa da minoria uigur têm enviado a mensagem de que a China está se tornando mais ditatorial. 

É mais fácil ver uma China cada vez mais rica, iliberal e agressiva como uma rival perigosa, que precisa ser confrontada. Em público, Pequim condena a “mentalidade de soma zero” dos americanos. Reservadamente, Xi parece considerar os EUA como um rival perigoso, empenhado em derrubar o Partido Comunista. Em 2014, Wang Jisi, um acadêmico com boas conexões em Pequim, dizia que a liderança chinesa se preocupava com “supostos esquemas dos EUA para derrubar o governo chinês”. 

Se essa rivalidade entre os EUA e a China é de fato inevitável, então como os dois lados se comparam atualmente? 

Em termos gerais, a diferença militar entre Washington e Pequim encolheu bastante. Mas os EUA têm uma rede de aliados que a China não tem como replicar. Não há um “Pacto de Pequim” à altura do Pacto de Varsóvia, que respaldava a União Soviética. Ao contrário, outras potências da região do indo-pacífico são aliadas em tratados com os EUA, incluindo Japão, Coreia do Sul e Austrália. Embora a Índia não seja um aliado formal dos EUA, provavelmente se inclinará mais para Wa-shington após os recentes confrontos com mortes entre soldados chineses e indianos na fronteira disputada pelos dois países. 

Mas, se os EUA ficarem à margem no caso de um ataque chinês a Taiwan, então o sistema de alianças dos EUA pode não sobreviver ao choque. De modo oposto, se a rivalidade entre Washington e Pequim nunca escalar a ponto de virar um confronto militar, então a China tem outros ativos dos quais poderia se valer. É o maior parceiro comercial de mais de cem países; em comparação a 57 países no caso dos EUA. 

A China também é um rival plausível dos EUA na corrida tecnológica. Está claro que algumas empresas chinesas de tecnologia são vulneráveis a cortes de componentes americanos fundamentais – em particular chips e semicondutores para computadores. Por outro lado, a China está à frente em certas tecnologias, como pagamentos por celular, e é um forte concorrente em áreas como inteligência artificial e medicina. 

A rivalidade científica entre EUA e China certamente é reminiscente da rivalidade entre EUA e União Soviética, que foi encabeçada pela corrida espacial. 

Rivais integrados: Embora os paralelos entre a atual rivalidade EUA-China e a do início da Guerra Fria sejam evidentes, há algumas diferenças importantes. A mais óbvia é a profunda integração das economias dos EUA e da China. O comércio bilateral soma mais de US$ 500 bilhões por ano. A China tem mais de US$ 1 trilhão em títulos de dívida dos EUA. Empresas americanas importantes dependem da fabricação e da venda de seus produtos na China. A produção do iPhone da Apple 

está baseada em uma cadeia de fornecimento localizada no sul da China. Há mais lanchonetes da Kentucky Fried Chicken na China do que nos EUA. 

Esse entrelaçamento econômico também criou um grau de convergência social. A China pode ser governada por um partido comunista, mas suas principais cidades pulsam com vida comercial, empreendimentos privados e marcas ocidentais, e em nada lembram a uniformidade cinza da União Soviética. “A sociedade chinesa é mais similar à sociedade americana do que a sociedade soviética jamais foi ”, ressaltou Odd Arne Westad, historiador da Universidade Yale, na revista “Foreign Affairs”. 

Também há fortes laços científicos e educacionais entre China e EUA. A filha de Xi estudou em Harvard. A filha de Stálin não foi a uma universidade americana. 

Por causa da integração econômica e social entre EUA e China, alguns acadêmicos argumentam que a Guerra Fria pode não ser a melhor analogia histórica, embora algumas das outras possíveis comparações não sejam nem um pouco menos alarmantes. Margaret Macmillan, que escreveu sobre as origens da Primeira Guerra Mundial, acha que o “paralelo mais importante é o com o Reino Unido e a Alemanha antes de 1914”. Foi uma rivalidade clássica de grandes potências, entre uma potência estabelecida e uma ascendente. Na época, alguns argumentaram que o grau de integração econômica entre a Alemanha e o Reino Unido tornava a guerra tanto irracional quanto improvável. Mas isso não evitou que os dois países entrassem em conflito. 

Westad, especialista tanto em China quanto em Guerra Fria, destaca que, diferentemente da população soviética em 1946, os chineses gozaram de 40 anos de paz e prosperidade. Portanto, “numa crise, os chineses mais provavelmente se pareceriam aos alemães de 1914 do que aos russos após a Segunda Guerra Mundial – mais irrascíveis do que exaustos”, diz. 

Há um anseio visível nos círculos nacionalistas na China de testar e demonstrar a força nacional. Em julho, Hu Xijin, editor do jornal “Global Times”, tuitou que a China “é capaz de destruir todas as instalações militares de Taiwan em questão de poucas horas, antes de tomar a ilha pouco depois”. “As Forças Armadas & o povo da China têm essa autoconfiança.” 

Outra analogia histórica, menos discutida no Ocidente, mas ouvida com frequência em Tóquio, é com o confronto entre o Japão imperial e os EUA, que chegou ao fim na Segunda Guerra Mundial. Nas palavras de um alto diplomata japonês: “Os chineses estão cometendo o mesmo erro que nós cometemos, que é contestar a hegemonia americana no Pacífico”. Mas, na época de Pearl Harbor, a economia japonesa tinha 10% do tamanho da americana. A China, em contraste, agora tem uma economia com cerca de dois terços do tamanho da americana – e que, pela paridade do poder de compra, é até maior. 

Há outro aspecto sugestivo na comparação entre a China moderna e o Japão dos anos 30. O Japão imperial dizia que estava libertando a Ásia do imperialismo ocidental (embora países invadidos pelos japoneses, como China e Coreia, não vissem dessa forma). Há indicações similares, quanto a um “choque de civilizações”, em alguns discursos nacionalistas chineses – a ascensão da China é retratada como algo que poria fim a séculos de domínio da ordem mundial pelos países ocidentais. 

A rivalidade anglo-germânica e o confronto nipo-americano terminaram em guerra. Mas elas irromperam numa era anterior às armas nucleares, enquanto a Guerra Fria foi definida pela ameaça de aniquilação nuclear. Talvez por isso forças soviéticas e americanas nunca entraram em confronto direto durante a Guerra Fria, embora tenham se confrontado em batalhas de terceiros. Yan Xuetong, importante acadêmico da Universidade de Tsinghua, em Pequim, argumenta que o medo de um conflito nuclear torna improvável que China e EUA entrem numa guerra – o que tornaria o atual confronto sino-americano mais parecido à Guerra Fria do que os anos anteriores às duas guerras mundiais. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/10/06/eua-e-china-rumam-para-uma-nova-guerra-fria.ghtml

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