Estão rindo de que? De quem?

Por Guilherme Mirage Umeda

O “Julgamento do Mensalão”, rótulo noticioso da ação penal 470, tem rendido acaloradas discussões em diversos de seus aspectos (tal qual tantas outras novelas). O mais recente evento diz respeito ao longo e polêmico voto do ministro Celso de Mello, acolhendo os embargos infringentes apresentados pela defesa de 12 dos condenados no processo. Interessa-nos, aqui, não propriamente o mérito técnico do voto (tratado de maneira muito esclarecedora pelo Prof. Jesse Jorge, aqui no Nota Alta – https://notaalta.espm.br/o-cutuco-do-mestre/crime-e-castigo/), e sim um fator específico da construção de sentido dada na cobertura jornalística do caso: o uso de uma fotografia.

Em 1983, Philippe Dubois consolidou uma série de noções que visavam interpretar a fotografia a partir da sua natureza sígnica, ou seja, em sua capacidade de significar algo (chamado na semiótica de referente). Seu livro, intitulado O ato fotográfico, traça o próprio histórico da reflexão sobre a fotografia perpassando, em três lógicas sucessivas, cada uma das classes de signos conforme propostas pelo filósofo norteamericano Charles Sanders Peirce (ícones, índices e símbolos). Para Dubois, o maravilhamento que acompanhou a apresentação pública das primeiras imagens técnicas se deve ao seu marcante realismo, à transparência no que diz respeito a sua capacidade representativa. A fotografia emerge como ícone por excelência, signo que remete ao seu referente por meio da identidade, da semelhança. Essa visão condiz com uma ideia da foto como imagem compromissada com a realidade, expressão neutra e objetiva de uma verdade incontestável, pois reproduzida automaticamente por aparelhos que independem da intervenção e interpretação humanas.

Entretanto, produziu-se, em especial na segunda metade do século XX, uma prolífica linha de escritos que denunciavam a dimensão construída e convencional dos sentidos na imagem fotográfica. Em oposição à mimese do ícone, a foto operaria – por meio de seus jogos de luz, enquadramento, perspectivas e clivagens temporais – uma construção de significados típica dos símbolos. Há aqui claras implicações ideológicas, uma vez que os “efeitos de realidade” da fotografia serviriam para camuflar os interesses do emissor, fortemente articulados às escolhas que o ato fotográfico exige, a começar daquilo o que é ou não fotografável.

Dubois explica, então, como as perspectivas simbólicas da fotografia não conseguem contornar o fato de na produção da imagem técnica, apesar dos recortes, construções e códigos, algo existiu. Ou seja, a foto é traço de um real, “atesta a existência (mas não o sentido) de uma realidade” (DUBOIS, 2008, p. 52).

Contudo, como explica Merleau-Ponty (2006, p. 18), “porque estamos no mundo, estamos condenados ao sentido”… Mesmo compreendendo essa manobra referencial que o ato fotográfico produz, não podemos deixar de nos interrogar como essas imagens significam, em especial no contexto de sua utilização, mais do que de sua produção. Nesse sentido, apesar de indiciária, a fotografia não abandona nunca por completo sua dimensão simbólica.

A homepage do UOL em 18 de setembro, momentos após a leitura do voto de Celso de Mello, estampou como sua manchete principal “STF retoma julgamento do mensalão”. Logo abaixo, uma foto do ministro decano sorrindo tem a seguinte legenda: “STF não pode submeter-se à vontade da maioria”. Ao lado direito da imagem, outros títulos consolidam o clima de velório: “novo julgamento do mensalão deve ficar para 2014”; “Toffoli já havia falado em demora de 2 anos”; “condenada quer reduzir pena em 3 anos”. Apesar da explicitação de um posicionamento valorativo em relação ao tema, o portal não abandona o espírito democrático ao chamar o leitor a votar (tal qual os ilustres ministros).

Evidentemente, a foto escolhida para representar Celso de Mello não pode ser considerada uma “representação objetiva” do ministro, uma vez que abandonamos a ilusão mimética conforme criticada por Dubois. Do ponto de vista indicial, algo esteve lá, um real é referenciado; entretanto, o sentido da imagem não pode ser extraído disso o que se faz traço do real. O sentido está para além do ato fotográfico, mas funda-se em seu efeito de realidade para constituir-se. Que o ministro riu, parece indiscutível; o sentido da risada não pode, evidentemente, ser depreendida do ato puro da captação da imagem. É o contexto de utilização da foto do ponto de vista editorial que nos ajuda a compreender o que ela significa. A imagem sugere um ministro “rindo da cara das maiorias”, estas mesmas cujos desejos foram contrariados pelo seu voto impopular. Demonstra sua pretensa satisfação com o aceite dos embargos infringentes e a já proclamada absolvição dos envolvidos no “maior esquema de corrupção da história do país”. Lembra a emblemática revolta de Eneias Carneiro, em uma de suas anedótica vinhetas em campanhas eleitorais: “Estão rindo de que? De quem? Eu não estou rindo!”.

Não queremos sugerir, de maneira ingênua, que a mídia tenha força determinante sobre a opinião pública. Entretanto, é patente a relação que enreda o posicionamento midiático e as expectativas do público. Não é de se surpreender que no ciber-tribunal do UOL, a porcentagem de leitores contra a decisão do STF atinja 89,18%, mesmo que o Datafolha tenha apontado, em manchete destacada algumas horas antes, que 55% dos paulistanos eram contra o novo julgamento. Seja porque a cobertura já enviesa a opinião dos leitores, seja porque o próprio veículo é escolhido pelos leitores por conta de suas posições (ou ainda, um pouco de cada coisa), não é possível crer que a diferença entre as porcentagens se deem apenas por erro amostral. E ainda, se as enquetes não têm propriamente valor estatístico, ao que elas servem, senão para reafirmar e legitimar pela vox populi convicções sustentadas antecipadamente pelo veículo?

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