Epidemia é ameaça grave a trabalhadores uberizados

Nesta semana o Congresso dos EUA aprovou um pacote de US$ 8 bilhões para enfrentar o coronavírus, destinado especialmente a hospitais e à pesquisa médica. Mas há um ponto infelizmente ausente desse projeto de lei: o compromisso de fechar os buracos da rede de segurança médica e social americana que ficaram expostos pela doença conhecida como covid-19. 

Isso é importante. Se esses buracos não forem fechados, e o vírus continuar se disseminando, isso poderá exacerbar o custo para a economia. E, como o Fed sabe muito bem, é insensato recorrer à política monetária para amortecer esse impacto – apesar do corte das taxas de juros em 50 pontos-base. 

Essa fragilidade da rede de segurança dos EUA é relevante devido à ascensão nos últimos anos da chamada “uberização” da economia, na qual os trabalhadores são pagos, de maneira fragmentada, por trabalho eventual, muitas vezes vinculado a plataformas tecnológicas, como os serviços de transporte e de entregas de comida. 

Monitorar essa atividade sempre foi difícil. Mas economistas estimam que cerca de 25% dos trabalhadores americanos são hoje prestadores de serviços eventuais, parcela consideravelmente superior à de anos anteriores. E quase metade deles tem nesse trabalho sua principal fonte de renda. 

De certo modo, a economia uberizada foi positiva para o crescimento dos EUA: a criação de novos empregos eventuais ligados à área tecnológica ajudou a reduzir o desemprego no país ao menor nível em 50 anos. Também parece ter contido a expansão dos salários e a inflação, o que permitiu ao Fed manter as taxas de juros baixas. 

Mas o lado sombrio desse sistema é a insegurança. A remuneração eventual é imprevisível. Os prestadores de serviços eventuais geralmente não têm acesso a seguro-desemprego, salário em caso de doença nem assistência médica financiada pela empresa. Na Europa, essa lacuna é preenchida pela rede pública de saúde; isso não ocorre nos EUA, de maneira geral. 

Trabalhadores eventuais bem-remunerados, como engenheiros de software, podem administrar essa insegurança pela compra de planos de saúde privados. Mas muitos trabalhadores eventuais ganham pouco e, ao sacrificar esse benefício, engrossam o exército de 27,5 milhões de americanos desprovidos de seguro saúde. Outros compram apólices baratas que exigem que eles paguem, do próprio bolso, os primeiros milhares de dólares da conta médica. 

Isso cria evidentes riscos médicos com o coronavírus. O custo da realização de exames e tratamentos vai dissuadir alguns americanos de procurar assistência caso fiquem doentes. Histórias de contas meteóricas fervilham na mídia. Um homem de Miami disse ter recebido uma conta de US$ 3.270 por um exame voluntário para detectar coronavírus A falta de salário em caso de doença pode estimular trabalhadores eventuais doentes a continuar trabalhando. 

Se o coronavírus desencadear um desaquecimento duradouro dos setores de viagens, turismo e varejo, isso atingirá com especial violência os trabalhadores eventuais. Isso é relevante num país em que tantas famílias assalariadas vivem da mão para a boca, sem reservas. Quase um terço das famílias americanas não consegue cobrir uma conta emergencial de US$ 400 com os recursos próprios. 

O que fazer? O Congresso pode tornar os exames e talvez o tratamento do coronavírus gratuitos para quem não têm seguro saúde. Mas é necessário muito mais. Laurence Boone, economista-chefe da OCDE, sugeriu que os governos usem “transferências diretas temporárias” de dinheiro para respaldar famílias vulneráveis, caso o vírus se propague. Isso teria mais impacto e tranquilizaria mais. 

Os líderes americanos precisam discutir a criação de uma rede de segurança social melhor, de longo prazo, para os trabalhadores eventuais. O presidente do Fed, Jay Powell, sabe que cortes das taxas de juros não são suficientes, mas ele tem restrições a tratar de maneira direta questões de política pública. É aí que se esconde uma tragédia 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/03/06/epidemia-e-ameaca-grave-a-trabalhadores-uberizados.ghtml

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