Desde dezembro, a comunidade muçulmana da Índia tem um ponto de encontro em Nova Délhi: o bairro de Shaheen Bagh. É ali que os integrantes da segunda maior religião da Índia – com cerca de 200 milhões de fiéis – se reúnem há 50 dias seguidos para protestar contra uma emenda à lei da cidadania que discrimina o islamismo.
Este já é considerado o maior protesto pacífico do país – onde mais de 79% da população segue a religião hindu. Mumbai, centro financeiro da Índia, Bangalore, Kochi, Calcutá e Hyderabad também registraram manifestações semelhantes.
A mudança na lei concede nacionalidade indiana a minorias religiosas – como cristãos, budistas, hindus, parsis, sikhs e jains –, que, por sofrerem perseguição, tenham fugido dos vizinhos Paquistão, Bangladesh e Afeganistão – de maioria islâmica – e estejam em solo indiano há mais de cinco anos. No entanto, há muçulmanos perseguidos em Mianmar que ficaram de fora da medida.
A mudança aprovada pelo Parlamento é de autoria do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, um nacionalista hindu. A principal líder da oposição, Sonia Gandhi, afirma que foi uma vitória da intolerância sobre o pluralismo da Índia.
Em agosto de 2019, Modi implementou um Registro Nacional de Cidadãos (NRC) no Estado de Assam para identificar residentes que chegaram à Índia após o início da guerra civil de Bangladesh, em 1971.
“Quase 2 milhões de pessoas perderam sua cidadania como resultado do novo registro. Mas, quando se descobriu que 1,2 milhão era de hindus, isso levou aos esforços do BJP (partido de Modi) para aprovar uma lei que daria uma via rápida para a cidadania de imigrantes de países vizinhos – desde que não sejam muçulmanos”, explica a professora Rashmi Singh, da PUC-MG.
O ex-ministro das Relações Exteriores da Índia Shashi Tharoor cita alguns fatores para o fortalecimento do nacionalismo hindu: a ascensão das classes mais baixas, a reação negativa contra a classe política – desde a independência, a Índia foi governada na maior parte do tempo por uma “dinastia” de representantes do Partido Congresso Nacional – e a revolta contra a globalização.
“O crescimento desses sentimentos ocorreu num tempo em que muçulmanos paquistaneses intensificaram sua campanha de incitar, financiar e promover atos terroristas na Índia”, disse.
Tharoor lembra ainda que 65% da população indiana tem menos de 35 anos e quer “mudanças e progresso”. Outro ingrediente, segundo ele, é a força das redes sociais, que exacerba “as piores crenças das pessoas expondo-as a preconceitos que não havia no passado”.
“O fanatismo se tornou respeitável e a animosidade contra muçulmanos, antes escondida em um véu de civilidade, se tornou um ativo eleitoral”, escreveu o ex-chanceler em um artigo.
Em Shaheen Bagh, o clima é amistoso – mulheres e crianças sentam-se no chão, enquanto os homens gritam em pé frases como “Salve a Constituição da Índia”. Amigos e conhecidos levam comida, que é divida com os manifestantes. A figura do líder pacifista Mahatma Gandhi, defensor do secularismo da Índia, assassinado por um nacionalista hindu, em 1948, aparece nos cartazes.
Para os manifestantes, a mudança marginaliza os muçulmanos. É o caso de Sanjeed, de 26 anos, que pede para não ter o sobrenome citado por medo de retaliação. “A lei espalhou medo dentro de uma comunidade que faz parte da Índia há séculos”, afirma. “Ela cria uma clara divisão de como a comunidade muçulmana será tratada quando comparada ao restante do país.”
Outro argumento dos manifestantes é que a alteração na lei fere o espírito laico da Índia ao fazer da religião um fator para obter cidadania. “Esse ódio contra os muçulmanos está sendo normalizado na sociedade indiana”, lamenta Sanjeed.
Um recente estudo do Pew Research Center indica que os muçulmanos sofrem algum tipo de perseguição religiosa em pelo menos 140 países. Em primeiro estão os cristãos, perseguidos em 143 nações.
A Índia diz que a lei é apenas a formalização de uma política para conceder cidadania a minorias que são perseguidas por razões religiosas nos países estabelecidos e vários governos no passado promulgaram regras para facilitar esse processo.
“A lei é sobre inclusão, e não exclusão. O ato está alinhado com o ethos secular da Índia, de assimilação e crença em valores humanitários”, afirmou o Consulado da Índia em São Paulo