Da série: Princípios da Criação

Por Heraldo Bighetti Gonçalves

2. Caçadores de imagens

Estamos por volta de 1940, cai uma violenta tempestade no vilarejo de Montignac, precisamente no vale de Vézère, Dordogne, sul da França. Vulcano, aquele filho mais feio de Zeus prepara, aponta e manda um raio certeiro que atinge uma grande árvore, abrindo imensa fenda em seu tronco. O bosque estremece com o ribombar do trovão. E como sempre acontece depois do maior deles, a chuva caiu copiosa apagando o fogo na árvore ferida. Até hoje não se sabe se o Olimpo estava envolvido na trama, mas os deuses, que certamente já não aguentavam mais a soberba humana, começavam a colocar as coisas em seu devido lugar.

Passam-se dias até que quatro meninos elegem aquele tronco oco como seu lugar preferido para brincar e sonhar. E um sonho de milhões e uma noites se transformou em realidade quando da fenda surge a entrada de uma caverna. Aqueles pequenos franceses deram a luz àquela que já foi chamada a Capela Sistina da Pré-história. Senhoras e senhores, com vocês Lascaux. O lugar onde a arte humana nasceu.

Mais de quinze mil anos antes de nossos moleques, a cena era outra. Vamos dar um espiada rapidinha. Gurk um homem até que bem sapiens preparava-se para iniciar outro grupo de jovens nos segredos que nem ele entendia. O dia seria importante para o futuro de sua irrequieta audiência. Mesmo Gurk não sabendo o que é o futuro, até a própria palavra faltava em seu pequeno vocabulário, mas isso seria um problema que ficaria para o futuro.

Segredos, magia, mistérios. Esse era o negócio de Gurk. Ele conversa com a floresta. Urra para o céu, conjura o trovão e, nas horas vagas, prepara os jovens para enfrentar os elementos divinos da natureza.

O grupo está reunido, aguardando na entrada da caverna onde os espíritos da caça moram. O silencio é respeitoso. Gurk traz em uma das mãos a última palavra em tecnologia, uma tocha acesa, e rapidamente encaminha o grupo para o interior da terra. Os olhos de todos demoram a se acostumar com a escuridão. Gurk sabe que é hora de entoar um canto ritual ensinado pelo xamã anterior. O medo agora toma o lugar do respeito. A tocha se aproxima das paredes para todos verem a alma dos bisões e de outros animais aprisionados na pedra. Gurk mostra como a caça deveria ser feita. O cerco. O ataque. Os animais. E todos se maravilham

Essa talvez seja a mesma sensação que todos sentem até hoje ao entrar em Lascaux. O mistério continua, só que de forma mais pragmática.

Como nossos ancestrais poderiam ter manejado com tal maestria a arte da pintura? E as cores, até hoje presentes e vivas?

A genialidade da descoberta do acaso esconde-se nas respostas. O calcário da caverna, com suas nuances de cores, foi pintado com tintas onde estava presente o sangue. E como no sangue existe ferro, o elemento permaneceu até hoje nas paredes. O perfeito domínio da perspectiva, de luz e de sombra, algo redescoberto apenas no Renascimento. O próprio contorno da rocha, com suas protuberâncias e concavidades foi aproveitado pelos artistas das cavernas, criando uma pintura com volume. Os movimentos dos animais são praticamente fotogramas de um filme. A pureza das linhas que formam os alces, bisões e até unicórnios, são tidos como exemplo da percepção humana na época. Ou seja, muito aguçada para garantir a sobrevivência do indivíduo.

A imagem serviu para capturar a natureza e seus espíritos, mesmo antes de uma linguagem estruturada ser desenvolvida. Hoje voltamos ao mundo das imagens significativas, indiciais, icônicas, simbólicas e tudo aquilo que a semiótica desejar explicar. Daqueles primeiros diretores de arte, até nossos designers contemporâneos, o mundo continua aí para ser representado, interpretado ou reinterpretado. Tempo e imagem se encontram para nos levar adiante, às vezes poupando tempo, às vezes gastando-o na incompreensão dos conceitos.

Então, da percepção de mundo e agudeza de detalhes dos perigos e do alimento perdidos na confusão de uma floresta, passamos ao mundo do século XXI. Agora a confusão está nas mensagens que devemos filtrar para que possamos sobreviver com uma relativa sanidade. E o caçador publicitário retoma a imagens fortes para formar ideias que se relacionem a produtos e serviços.

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