Em 1533, uma nobre de Calais ofereceu a um aristocrata que a visitou um presente peculiar: seu palito de dente pessoal que ela fez questão de dizer que tinha usado durante sete anos. Se o presente agradou a visita não se sabe, disse Hazel Forsyth, curadora do museu de Londres. Mas a história divertiu o público que assistia à sua palestra, no mês passado, no Festival da Manutenção, dedicado à manutenção das coisas em bom estado.
Eventos sobre a criação de coisas novas são muitos. Menos comuns são aqueles sobre como manter as coisas tão boas como se fossem novas. Manutenção não tem o glamour da inovação. E é mais observada na sua ausência – um rasgo na camisa, o mofo no teto, o motor do carro falhando. Não faz muito tempo, David Edgerton, do King’s College de Londres, que também proferiu uma palestra no festival, atravessava de carro a ponte que desmoronou em Gênova em agosto passado, causando a morte de 43 pessoas. “Somos estimulados a ser inovadores e empreendedores”, disse ele. A manutenção sempre é descartada como um mero trabalho enfadonho. Mas, na verdade, como ele sublinhou, reparar coisas é sempre mais complicado do que fabricá-las.
E a reparação também é mais difícil de ser medida pelos economistas. O dado estatístico mais proeminente é o Produto Interno Bruto (PIB). Ele é “bruto” justamente porque deixa de fora os custos do desgaste. Para calcular esses custos, os estatísticos precisam calcular o tempo de vida dos ativos de um país e fazer suposições sobre a maneira como deterioram. Alguns são como lâmpadas, que funcionam até que apaguem completamente.
Os economistas chamam isso de um caso de “charrete”, uma alusão a um poema de Oliver Wendell Holmes, em que ele imagina uma charrete tão bem construída que nunca quebra até finalmente desmoronar, vítima de “um estado geral de suave decadência”.
Outros ativos são menos poéticos. Muitos são considerados usados em uma “linha reta”, deteriorando no mesmo volume a cada ano. Outros perdem uma forte porcentagem do seu valor. O Japão estima que as casas perdem 4% do seu valor remanescente a cada ano.
Esta pode ser uma razão pela qual os custos do desgaste (ou consumo do capital fixo) são muito mais altos no Japão (22% do PIB) do que em muitos outros países, onde as casas envelheceriam mais dignamente.
E quanto as economias gastam para combater a deterioração? Ninguém sabe, talvez porque grande parte da manutenção é feita em casa e não é comprada em um mercado. Os melhores dados foram coletados no Canadá, onde as empresas gastaram 3,3% do PIB com consertos em 2016, mais de duas vezes o montante gasto pelo país em pesquisa e desenvolvimento.
Reposição. No festival, Edgerton citou a velha ideia do “despotismo hidráulico”: o argumento de que as tiranias do antigo Oriente surgiram para forçar as pessoas a manterem os frágeis sistemas de irrigação. Naquelas sociedades, consertar devia ser reprimido. Mas hoje alguns têm a preocupação oposta. E consideram a manutenção e o conserto um direito que estão em perigo de perder para empresas que guardam zelosamente seus depósitos de peças de reposição e suas informações.
Em março a Califórnia se tornou o 18.º Estado nos Estados Unidos a promulgar lei corroborando o “direito de consertar”, obrigando as fábricas a produzirem manuais disponíveis para os clientes e independentes das oficinas de conserto. A Comissão Europeia propôs algo similar para o caso de lava-louças, máquinas de lavar roupa e similares.
Algumas pessoas acham que têm o direito de consertar propriedade pública também. Um palestrante no festival que se qualificou como um “jardineiro guerrilheiro” e escondeu a identidade com um capacete, descreveu seus esforços sub-reptícios para limpar pontes e repintar os semáforos em Cambridge, sem autorização. Hoje, na sociedade do descartável, consertar equivale a se rebelar.
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