Com a reforma do Judiciário, México terá de fazer eleição para escolher 7 mil juízes

Financial Times; Quando os mexicanos chegarem às cabines de votação no próximo ano para eleger seus juízes pela primeira vez, eles enfrentarão uma tarefa única e assustadora.

Na capital Cidade do México, os eleitores terão que escolher juízes para mais de 150 cargos, incluindo na Suprema Corte, de uma lista de 1.000 candidatos dos quais a maioria nunca ouviu falar. Para cada um dos 150 cargos, será reservado um espaço para os eleitores escreverem individualmente os nomes de até 10 candidatos

Na ausência de soluções improvisadas, como dividir os juízes em subdistritos, poderá levar até 45 minutos só para preencher as cédulas, estima um analista. Mesmo com esses ajustes, os eleitores ainda terão que escolher entre dezenas de nomes desconhecidos.

“É impossível”, diz Jaime Olaiz-González, professor de teoria constitucional da Universidad Panamericana do México. “Em nenhum país, nem mesmo no mais atrasado, alguém propôs um sistema como esse.”

A votação será o ápice de uma iniciativa do presidente nacionalista de esquerda do país, Andrés Manuel López Obrador, para reformar radicalmente um braço do Estado que frequentemente o irritou ao bloquear seus planos.

Graças a uma maioria de dois terços conquistada pela coalizão Morena do presidente nas eleições de junho, o congresso mexicano aprovou na semana passada uma mudança constitucional que demitirá todos os quase 7.000 juízes da nação e elegerá seus substitutos em duas votações, metade em 2025 e a outra metade em 2027. Isso tornará a nação de 130 milhões de habitantes de longe a maior a tentar tal processo até hoje.

Diante de um coro de críticas no México e internacionalmente, López Obrador disse que as mudanças radicais reduzirão a corrupção, ao mesmo tempo em que tornarão o Judiciário mais responsável e democrático. Líderes empresariais temem que elas venham a minar o Estado de Direito e ameaçar bilhões de dólares em investimentos de nearshoring.

O partido do presidente, o Morena, apressou a aprovação da legislação, mas faltam detalhes cruciais, com pouco tempo para discuti- los antes que as campanhas para as milhares de vagas para juiz comecem no início de 2025.

López Obrador está no último mês de seu mandato e entregará o cargo para sua aliada, a presidente eleita Claudia Sheinbaum, em 1 de outubro. Sheinbaum apoiou fortemente o plano, dizendo este mês que “não há possibilidade de reverter a reforma” porque ela foi “a decisão do povo mexicano”.

A equipe da presidente eleita disse que uma legislação secundária a ser aprovada em 90 dias abordará as preocupações entre os investidores. Mas ela provavelmente trará mais detalhes, em vez de mudar substancialmente a reforma, afirmam especialistas jurídicos.

“Há coisas que eles poderão fazer, mas as partes mais centrais da reforma agora não têm solução”, diz Luis Carlos Ugalde, ex-presidente do instituto eleitoral. Geraldo Fernández Noroña, presidente do Senado do México, sustenta que aqueles que elaboraram a reforma pensaram nos problemas. “Ela tem sua complexidade, mas tem solução”, disse ele ao “Financial Times”, acrescentando que a convocação dos candidatos terá que ser realizada em um mês. “É uma tarefa titânica.”

As mudanças aumentaram drasticamente os riscos políticos para os investidores e criaram um problema com o governo dos Estados Unidos. A Human Rights Watch disse que a reforma “comprometerá seriamente a independência judicial” e violará os padrões dos direitos humanos.

Sob as novas regras, juízes e magistrados poderão optar por serem colocados na cédula automaticamente, mas o presidente e o Congresso — ambos controlados pelo Morena — selecionarão a maioria dos demais candidatos. Uma vez empossados os juízes, um tribunal disciplinar, com membros que também serão eleitos, terá amplos poderes para demiti-los.

“A possibilidade de que se venha a observar um viés claro da parte desses juízes é muito alta”, diz Juan Francisco Torres Landa, sócio da firma de advocacia empresarial Hogan Lovells. “Quando você tem casos administrativos ou fiscais contra autoridades a probabilidade de um resultado favorável a você será muito, muito menor.”

Fernández Noroña, o presidente do Senado, sustenta que “todos os problemas que eles dizem que haverá no novo Judiciário são os problemas atuais”. Ele diz que o país não será chantageado por ameaças de retirada de investimentos. “Os investimentos florescerão… Ele [o novo Judiciário] não beneficiará apenas quem tem dinheiro, mas quem realmente estiver certo.”

Em uma rara intervenção com palavras contundentes no mês passado, o embaixador dos EUA no México, Ken Salazar, disse que a reforma é um “grande risco” para a democracia do México e poderá tornar o Judiciário mais vulnerável ao crime organizado. O líder da oposição Alejandro Moreno disse que as gangues de traficantes enviaram mensagens aos legisladores para pressioná-los a aprovar a reforma.

Doações em dinheiro sem identificação da fonte — o que é ilegal — já são comuns nas campanhas políticas mexicanas e raramente são rastreadas pelas autoridades. “Corremos o risco de sermos corrompidos e ainda mais infiltrados pelo crime organizado”, disse Carlos Ugalde. “Se os EUA tiveram um narcoestado em sua fronteira sul, isso será um grande problema para eles.”

No México, onde os carteis de traficantes já controlam grandes parcelas do território e exercem poder sobre aspectos significativos da vida nacional, os juízes nomeados pelo Conselho Judicial Federal sob o sistema atual sofrem pressões e até mesmo mortos. O Judiciário fornece proteção para aqueles que são ameaçados.

Sob a nova lei, os casos envolvendo o crime organizado poderão ser conduzidos por “juízes anônimos”, um processo usado anteriormente na Colômbia, onde espelhos unidirecionais e distorcedores de voz estavam entre as medidas usadas para garantir o anonimato do juízes diante do público e dos réus. Mas essa medida hoje é criticada por grupos defensores dos direitos humanos, que a consideram injusta para os acusados e propícia a abusos por parte das autoridades, devido à falta de responsabilização.

“Parece uma boa medida de segurança, mas o problema surge se o governo usar isso para investigar pessoas não alinhadas aos seus interesses”, diz um juiz em exercício que lida com casos envolvendo o crime organizado no México. “É uma arma muito, muito perigosa, e mais ainda nos tempos atuais.”

Organizar a votação custará cerca de US$ 360 milhões, segundo a presidente eleita. Os distritos judiciais serão diferentes daqueles usados pela autoridade eleitoral nacional, complicando ainda mais a logística. Cada Estado definirá suas regras e cronogramas de eleição para os juízes locais, que julgam a maioria dos casos.

Alguns Estados dos EUA elegem juízes locais, embora não os federais, mas apenas a Bolívia — cujo governo de extrema esquerda é aliado da Rússia e de Cuba — realiza eleições nacionais para a Suprema Corte. Lá, na eleição de 2017, os eleitores anularam mais da metade dos votos em protesto.

As campanhas eleitorais para o Judiciário não terão financiamento público ou privado; o tempo de TV e rádio será dividido entre os candidatos. Na capital, se cada candidato tiver dois minutos para falar, isso resultaria em 33 horas de programação ininterrupta. “Será um circo”, diz um executivo da mídia.

López Obrador já fez outras experiências com a democracia direta. Em 2021, ele perguntou aos cidadãos se as autoridades deveriam investigar ex-presidentes. O comparecimento às urnas foi de apenas 7%, com 98% dos que votaram, endossando sua proposta.

No entanto, Fernández Noroña diz que as críticas à votação direta para o Judiciário surgem de “uma atitude racista e classista que diz que as pessoas não deveriam escolher juízes, que elas não estão qualificadas para isso… como se a lei não tivesse uma posição política”.

Os atuais membros do Judiciário foram às ruas para manifestar sua indignação com a reforma. O sistema jurídico do México parou nas últimas semanas como resultado de greves. Cerca de 100 juízes optaram por antecipar a aposentadoria este ano, segundo uma fonte a par dos acontecimentos.

Alguns no México torcem para que os atuais juízes optem por participar da eleição para suavizar a transição, mas os escritórios de advocacia estão se preparando para juízes menos experientes.

“Será como jovens recém-formados em medicina realizando cirurgias de coração aberto”, diz Torres Landa. “A incerteza será o fio condutor em toda essa tragédia.”

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