Cinema 3d: caverna dos sonhos esquecidos ou o tempo apreendido

César Veronese (CPV)

Em sua definição mais elementar a narrativa é um relato em que alguém conta uma história. Essa história acontece em algum lugar, numa certa época e é vivida por personagens. O narrador, por sua vez, é quem articula esses elementos e os torna intelegíveis (e sedutores) para os ouvintes, leitores ou espectadores.
Em busca de um sentido para as suas ações e o seu estar no mundo, o homem sempre se cercou de histórias. Dos mitos mais antigos às “tuitadas”, inventou e continua a inventar muitos tipos de narrativas. A pintura, a poesia, o romance, a música, o cinema, a propaganda, as HQs, as instalações, as cartas, os torpedos, e até mesmo as tatuagens, são modos de partilhar experiências, contar histórias e exercer a criatividade.
A sobrevivência de uma narrativa depende sempre da capacidade do narrador. Quanto mais habilidade ele manifesta para organizar os elementos de uma história, maiores são as possibilidades de permanência dessa história. Por isso ele precisa saber descrever, comparar, sugerir e atiçar a imaginação e a inteligência do seu público. Isso vale tanto para o narrador dos poemas homéricos (a ILÍADA e a ODISSÉIA), escritos há quase três mil anos, quanto para um cidadão comum do terceiro milênio que envia um torpedo.
Entre todas as formas de narrativa, o cinema talvez seja aquela que mais se beneficie das possibilidades de exploração do tempo. Uma sequência de imagens, um plano ou alguns cortes são suficientes para dilatar ou encolher o tempo em centenas ou milhares de anos. A cena mais antológica desse poder é aquele plano em que o macaco lança um pedaço de osso, este rodopia no espaço e se transforma numa nave interestelar. E nos rendemos, boquiabertos, ao talento de Kubrick.
O filme CAVERNA DOS SONHOS ESQUECIDOS, do alemão Werner Herzog, o mais importante documentarista em atividade, realiza um movimento inverso. Nosso olhar é fisgado de fora para dentro. Uma porta escavada na rocha e com a largura do corpo de um homem, nos leva a um conjunto de grutas, galerias e câmaras onde estão desenhos feitos há 32 mil anos.
Descoberta em 1994, a caverna de Chauvet, no sul da França, encerra os mais antigos registros de arte rupestre feitos pelo homem. Antes da descoberta, Lescaux, também na França, guardava tesouros inscritos na pedra há cerca de 20 mil anos. A descoberta, recua, portanto, mais 12 mil anos.
Um terremoto ocorrido há séculos soterrou a entrada principal e preservou os desenhos. Apenas um pequeno grupo de cientistas, Herzog e alguns seus assistentes tiveram acesso a Chauvet, que permanece fechada para o público.
Filmado em 3D, a técnica se revela perfeita para desvendar a profundidade dos espaços, as paredes curvas e as grutas inacessíveis. O documentário, dominado por imagens magníficas, permite várias leituras: estética, antropológica, científica, cinematográfica (ou metalinguística)… Todas, no entanto, convergem para um denominador comum: a relativização.
Contemplando a perfeição dos desenhos e considerando que as galerias e câmaras não eram usadas como habitação, somos obrigados a nos render ao senso estético desses homens que viveram 320 séculos atrás! O contraponto com o nosso tempo torna-se, então, inevitável. E daí a relativização.
E as perguntas se colocam: o que é primitivismo? O que é progresso? O que é arte? Um plano sequência mais para o final do filme acompanha vários conjuntos de desenhos, entre os quais o de uma série de cavalos, sugerindo movimento. Depois, enquanto se ouve as pulsações de um coração, o diretor enquadra a equipe de pesquisadores e assistentes. O olhar deles passeia das paredes da caverna para a câmara, ou, mais precisamente, para os olhos do espectador.
E nos perguntamos: e essas imagens, esses pontos de luz captados com a tecnologia do terceiro milênio, durarão 32 mil? Tal dúvida é uma ilustração da angústia do nosso tempo. Como teorizam vários pensadores da pós-modernidade, entre os quais Beaudrillard, Lyotard, Gumbrecht e Bauman, vivemos a época da destemporalização, da desrreferencialização e da destotalização. Uma época em que o real foi substituído pela representação do real, do hiper poder das imagens, da produção infinita de informações.
O excesso de sentido acaba por anular os referenciais e tudo passa a se equivaler: pessoas, objetos, marcas, o tempo e o espaço. Passamos a viver num presente contínuo. O modelo do celular comprado há três meses se torna antigo, o adjetivo “novo” se esvazia e reclama o superlativo “novíssimo”, os objetos são concebidos segundo a ótica da obsolescência programada, o design do carro “totalmente remodelado” não é mais que a mudança da cor de uma lanterna, postamos uma foto em frente ao Taj Mahal na forma de montagem sem nunca visitarmos a Índia, adicionamos ou deletamos contactos no facebook, os amigos de ontem já não interessam mais, integramos comunidades virtuais de fãs da Lady Gaga, dos pesarosos pela morte de Hugo Chávez ou de quem gosta de besouros azuis, crimes são encomendados como se fossem uma pizza… E a nossa vida gira no ritmo caleidoscópico de um videoclipe alucinado, sem que a atenção possa se deter mais do que o tempo de um flash em qualquer pessoa ou objeto.
CAVERNA DOS SONHOS ESQUECIDOS é um convite à contemplação do tempo por meio de um olhar capaz de resgatar o homem como sujeito, como criatura mediadora entre a natureza e a civilização, entre o concreto e o abstrato, a necessidade utilitária e a elaboração artística.
O documentário está em cartaz apenas no Cinesc (em final de temporada), na Rua Augusta, 2075 – Jardins.

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