China e EUA dão sinais (reais) de retomada de diálogo?

A recepção calorosa chamou atenção. O veterano da diplomacia americana Henry Kissinger ouviu do presidente chinês Xi Jinping que é um “velho amigo” em uma conversa que se contrapõe ao clima tenso entre Washington e Pequim que colocou o mundo sob a ameaça da Nova Guerra Fria.

O centenário Kissinger ajudou a construir a aproximação entre EUA China na década de 1970. O então secretário de Estado articulou a viagem histórica de Richard Nixono primeiro presidente americano a visitar Pequim, durante a Guerra Fria original, enquanto os EUA ainda lutavam na Guerra do Vietnã.

Xi Jinping relembrou o legado ao dizer que a China não esquece a contribuição histórica do diplomata para promover o crescimento da relação entre Washington e Pequim. É por isso que, mesmo sem caráter oficial, o encontro é simbólico.

“A presença de Kissinger desperta memórias de uma época em que a narrativa das relações EUA-China estava enraizada no engajamento colaborativo”, avalia Lizzi Lee, membro do centro de análises da China no instituto Asia Society ao Estadão.

“Isso serve como um contraponto pungente ao clima atual, definido pela competição estratégica. Esta é a mensagem que Xi Jinping pretendia transmitir”, destacou.

Esse desgaste da relação entre China e Estados Unidos tem sido uma preocupação crescente para o experiente Henry Kissinger e para o mundo.

Pouco antes do seu aniversário de 100 anos, o diplomata avisou que “nós estamos no caminho do confronto entre grandes potências” e comparou: “estamos na situação clássica pré-1.ª Guerra em que nenhum lado tem muita margem de concessão política e qualquer perturbação ao equilíbrio pode ocasionar consequências catastróficas”.

Agora, os dois lados dão sinais de aproximação. Enquanto a China relembra um passado mais amigável, os Estados Unidos sinalizam o que Joe Biden chamou no início do ano de “descongelamento” da relação.

No início da semana, Washington e Pequim concordaram em manter conversas regulares sobre questões comerciais e restrições no acesso à tecnologias de ponta durante a visita da secretária do Comércio dos Estados Unidos, Gina Raimondo à China. “Eu acho que é um ótimo sinal que tenhamos concordado com um diálogo concreto e diria que é mais do que um comprometimento nebuloso de continuar conversando, é um canal oficial”, disse Raimondo em entrevista horas depois do encontro com o ministro do Comércio chinês, Wang Wentao.

Esse foi o mais recente de uma série de reuniões com a intenção de reaproximar as duas grandes potências globais. Antes de Raimondo, três funcionários do alto escalão da Casa Branca visitaram a China no período de um mês: o atual chefe da diplomacia americana, Antony Blinken, a secretária do Tesouro, Janet Yellen, e o enviado especial para o clima John Kerry.

“Esse é o sinal mais promissor na relação entre EUA e China desde o início da pandemia e, sem dúvida, desde 2016 [quando Trump foi eleito]″, avalia o cientista político americano Scott Moore, diretor do programa de estudos estratégicos e China na Universidade da Pensilvânia ao Estadão.

O coordenador de Relações Internacionais da ESPM, Alexandre Uehara, concordou que os encontros são uma sinalização importante da “vontade política de distensionar a relação”, lembrando que o diálogo com China, em todas as áreas, exige um esforço de construção. “Esses canais de relacionamento são de médio e longo prazo. Precisam ser construídos. O Kissinger ser recebido de braços abertos da China mostra como essa construção é fundamental”, afirmou.

De olho na economia

A economia, ponto de interesse mútuo, parece ser parte de uma plataforma de reaproximação. A expectativa é de que sejam estabelecidos dois grupos de trabalho. O primeiro, com representantes empresariais, deve tratar de comércio enquanto o segundo vai envolver a troca de informações governamentais sobre a política de controle de exportações dos Estados Unidos.

No ano passado, a Casa Branca determinou que as empresas chinesas precisam de uma licença para comprar chips avançados dos EUA. Esse é um ponto especialmente sensível e foi destacado pelo ministro chinês Wang Wentao como um dos pontos de preocupação, junto com a guerra tarifária.

As tarifas bilionárias foram adotadas pelo então presidente Donald Trump, que deflagrou uma guerra comercial em resposta às acusações de roubo de propriedade intelectual. A taxação dos produtos chineses foi mantida mesmo com a troca de comando na Casa Branca — o que mostra como, apesar da divisão acentuada em Washington, os dois lados veem a China como uma ameaça.

O problema é que os americanos também pagam o preço de uma guerra comercial, que tem falhado em cumprir o seu principal objetivo: obrigar Pequim adotar práticas consideradas mais justas pelos EUA. Os consumidores americanos pagaram US$48 bilhões em tarifas para importar produtos da China em 2021, mostrou o centro de análises American Action Forum em levantamento recente.

Mais da metade desse valor corresponde aos insumos industriais e bens chineses usados pelas empresas americanas nos processos de produção. Ou seja, as taxas que visam conter Pequim impactam diretamente na competitividade da economia americana.

“Há boas razões econômicas para ambos os lados reduzirem as tarifas e tentarem melhorar os laços comerciais e de investimento”, acredita Scott Moore.

A China, por sua vez, tenta reanimar atividade econômica depois do baque causado pela pandemia. Os resultados, entretanto, têm sido fracos para os padrões chineses, como apontou Alexandre Uehara.

“Para um país que já teve taxas de crescimento em dois dígitos, crescer 3% é pouco. Existe uma preocupação do governo chinês. Até porque o Xi Jinping quer colocar a China em uma posição de maior protagonismo internacional. Para isso, precisa ter dinheiro. Então existe o interesse da China em melhorar a relação com os EUA”.

A economista Lizzi Lee concorda que, apesar das práticas comerciais ainda serem um ponto crítico entre China e Estados Unidos, os dois estão de olho na “estabilidade da economia global”.

Meio ambiente

O meio ambiente é outro ponto que poderia estimular a cooperação entre China e Estados Unidos. Pelo menos essa era a expectativa do enviado especial para clima, John Kerry, que também esteve em Pequim em julho, mês em que a temperatura do planeta atingiu máximas históricas.

O problema é global e os cientistas são enfáticos ao alertar que as consequências serão catastróficas se não houver uma ação urgente contra as mudanças climáticas. Por isso, a importância desse “descongelamento” da relação as grandes potências globais. De todo carbono lançado pela atmosfera, 14% é emitido pelos Estados Unidos e 31% pela China, um percentual que aumenta a cada ano.

Pequim promete que vai neutralizar as emissões até 2060, mas rejeita a pressão americana. Na semana da visita de Kerry, o presidente Xi Jinping disse que “o caminho, método, ritmo e intensidade para atingir esse objetivo” será determinada pela própria China, que “não aceitará a influência externa”.

Apesar do recado, a expectativa é que os dois lados voltem a falar sobre o tema antes da Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, a COP28, marcada para novembro.

“A cooperação nessa área é crucial para conter a crise climática global. Os dois países poderiam trabalhar juntos em iniciativas como tecnologias de energia verde, redução de emissão [de gases do efeito estufa] e política climática”, sugeriu Lizzi Lee.

Essa ponte estava completamente rompida desde o ano passado, depois que a então presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, esteve em Taiwan. A ilha reivindica autonomia, mas é considerada por Pequim como parte do território chinês. O episódio foi considerado uma afronta, e levou Pequim a cortar a cooperação militar e ambiental com Washington, afundando a relação em uma ponto crítico.

Nesse contexto, mesmo sem efeitos práticos imediatos, a retomada do diálogo foi celebrada por John Kerry que reconhece ainda ter “muito trabalho” pela frente.

Esse é um exemplo que mostra como, apesar do esforço em restabelecer a relação, o caminho para um entendimento entre China e Estados Unidos ainda é longo. “Há um escopo para cooperação contras mudanças climáticas, mas mesmo essa área provavelmente será tema de debate político e competição geopolítica”, constatou Scott Moore.

Reaproximação, afinal, é possível?

Depois que os americanos foram a Pequim, agora a expectativa é que os ministros chineses retribuam com visitas a Washington. No horizonte, há uma potencial viagem de Xi Jinping aos Estados Unidos e as negociações têm o objetivo de abrir caminho para uma conversa entre Xi e Joe Biden, em novembro, no Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec em inglês).

Os sinais, no entanto, devem ser vistos com cautela. É “improvável que quaisquer mudanças significativas nas relações bilaterais ocorram rapidamente”, alerta Lizzi Lee.

Ela avalia que, de um lado, há um postura de cautela da China em relação à aproximação do governo Biden, moldada pela percepção de Xi Jinping que vê as políticas americanas como “adversárias à China”. Do outro, é consenso entre democratas e republicanos, que uma “postura linha-dura” com Pequim é a posição mais “prudente”.

“A crescente assertividade da China na plataforma global, especialmente sob a liderança do presidente Xi Jinping, representa um desafio para a ordem mundial liderada pelos EUA. Isso culminou em uma postura mais rígida dos EUA, com esforços para neutralizar a influência de Pequim que permeia diversas arenas, como tecnologia, comércio e segurança”.

Nesse sentido, a proximidade das eleições americanas limita uma eventual melhora na relação. “Dentro do cenário político interno dos EUA, qualquer apaziguamento em relação à China corre o risco de provocar uma reação negativa, acredita Lizzi Lee.

A opinião é reforçada pelo americano Scott Moore. Para o pesquisador, “é improvável que o governo Joe Biden tenha qualquer benefício por buscar uma relação mais moderada com a China”.

O professor de relações internacionais da USP Pedro Costa Júnior concorda que a “agenda de contenção da China é inquestionável e uniforme” nos Estados Unidos. Para ele, a divergência sobre o método que deve ser usado para atingir esse fim.

“No governo Donald Trump os EUA acreditavam que poderiam se aproximar da Rússia para isolar a China, mas a guerra na Ucrânia mudou tudo. É uma movimentação definitiva das peças, os Estados Unidos não podem mais atrair a Rússia”, avalia.

É nesse contexto, acredita o professor, que entra a estratégia do experiente diplomata Henry Kissinger de conter a China pela aproximação, como na década de 70. O problema, lembra ele, é que o mundo mudou.

“As condições postas são completamente diferentes da Guerra Fria, inclusive, pela aproximação entre Rússia e China, pelo grau de tensão nos Estados Unidos e pelos atores que estão tocando essa agenda. Antes você tinha o Kissinger no auge da carreira como secretário de Estado. Hoje ele está com 100 anos e atua nos bastidores. Isso faz toda diferença”, pontua Costa.

Há também as áreas em que não há qualquer canal de diálogo aberto neste momento, como direitos humanos, a tensão militar e a crescente ameaça chinesa sobre Taiwan.

“Acredito que o melhor que podemos esperar no médio prazo é uma moderação da relação bilateral entre Estados Unidos e China e um desenrolar gradual da guerra comercial”, prevê Scott Moore, que aposta em uma relação mais próxima do “status quo” para os próximos anos.

Embora as previsões não sejam de um avanço definitivo, esse cenário de “moderação” é considerado positivo por Alexandre Uehara. “Até então, os discursos de parte a parte eram muito ásperos com declarações de desconfiança e troca de ameaças em alguns momentos. Um clima muito preocupante para o mundo porque são duas potências econômicas e nucleares. É importante que esse canal de comunicação tenha sido aberto”.

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