Brexit é parte de divisão mais ampla no sentimento europeu

A maior demonstração pró-União Europeia (UE) na história foi realizada neste sábado. Ironicamente, essa exibição de eurofilia, em que 1 milhão de pessoas foram às ruas de Londres para protestar contra o Brexit, deu-se em um país que está por deixar a UE. O plano para sair do bloco econômico criou como resultado paradoxal algo inteiramente novo – um veemente movimento pró-Europa no Reino Unido.
Vasculho minha memória para lembrar a última vez em que se viram tantos manifestantes com a bandeira da UE e o melhor que consigo encontrar é Kiev, em 2013-2014, quando os ucranianos protestaram nas ruas contra a decisão do governo de não assinar um acordo de associação com o bloco econômico europeu. É uma comparação nada feliz, tendo em vista que muitos manifestantes em Kiev foram alvos de tiros nas ruas, desencadeando uma sequência de eventos que culminou em guerra.
A agonia britânica com o Brexit dificilmente levará a algo tão drástico. O país, entretanto, agora está dividido ao meio em relação à questão europeia, com a fronteira entre os dois lados passando a representar uma nova forma de identidade política que vai bem além da posição em relação à UE.
Com toda a probabilidade, a ascensão do lado favorável à permanência veio muito tarde para evitar o Brexit. Mas a vitória dos favoráveis à saída – se realmente for conquistada – vai chegar a um preço alto, o de um país amargamente dividido e de um péssimo acordo, que a maioria das pessoas (inclusive os defensores da saída) vão detestar. A fantasia dos favoráveis ao Brexit, de britânicos felizes e unidos celebrando seu “dia da independência” da UE, virou ilusão, assim como tantas outras das expectativas que estavam em seu plano.
Mas o país não é o único rachado politicamente na Europa. No mesmo dia em que os favoráveis à permanência protestavam em Londres, os “gilets jaunes”, os coletes amarelos franceses, antiestablishment, voltaram à carga com manifestações em Paris e outras cidades francesas. O fim de semana anterior havia testemunhado grandes manifestações de separatistas catalães nas ruas de Madri.
Toda essa efervescência política nas ruas europeias indica que as atuais manifestações britânicas fazem parte de um cenário bem maior. Os seis maiores países da UE em população (Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Espanha e Polônia) deparam-se com profundas divisões internas que seriam difíceis de prever há cinco anos.
Embora os problemas sejam diferentes em cada país, os incidentes em cada um deles muitas vezes transbordam entre as fronteiras e mudam o humor político por todos os lados. O plebiscito britânico para sair da UE foi influenciado pela crise alemã dos refugiados em 2015. A ala mais radical da campanha pela saída do Reino Unido começou a usar os coletes amarelos dos que protestam contra o governo de Emmanuel Macron na França. A iniciativa para fazer um plebiscito sobre a independência na Catalunha tem inspirações no realizado na Escócia em 2014.
A natureza interconectada da política europeia deveria colocar em evidência para os líderes europeus que seu próprio quadro político provavelmente será afetado pela forma como se desenrolar o Brexit. Isso é importante porque a Europa está longe de ser um continente estável no momento. Governos nacionalistas-populistas já estão no poder na Itália, Hungria e Polônia e formam parte da coalização de governo da Áustria. A extrema direita também teve bons desempenhos nas eleições na França, Alemanha e Holanda e conquistou terreno na Espanha.
Quando se observa esse desfile de casos políticos disfuncionais, o Brexit parece ser a versão britânica de uma crise bem maior, em vez de apenas alguma aberração excêntrica. Na verdade, o Reino Unido evitou alguns dos piores sintomas da doença europeia.
As facções rivais favoráveis à saída e à permanência estão acampadas do lado de fora do Parlamento com suas bandeiras e há fúria de sobra no ambiente – mas, até agora, há pouca violência nas ruas. É um contraste gritante com a França, onde em 16 de março mais uma vez houve tumultos em manifestações dos coletes amarelos. Os “separatistas” escoceses, ao contrário de seus equivalentes catalães, não estão sendo processados – são participantes ativos e importantes no debate do Brexit.
Infelizmente para os britânicos, porém, as migalhas de consolo acabam aí. A triste verdade é que a versão britânica da crise europeia é singularmente autodestrutiva. Isso porque o Brexit vai ser, ao mesmo tempo, uma ruptura na ordem jurídica, uma renúncia à mais importante aliança internacional do país e, com toda a probabilidade, um profundo choque à economia.
Trata-se de um extraordinário golpe à estabilidade do Reino Unido. Além disso, embora novos partidos extremistas não estejam em ascensão, isso se dá em parte porque a extrema esquerda assumiu a liderança do Partido Trabalhista, enquanto a direita nacionalista formou seu bloco dentro do governante Partido Conservador.
O fato de a crise política no Reino Unido ser particularmente profunda representa um dilema para os líderes europeus de centro remanescentes. Eles precisam se perguntar se vale a pena cortar laços com o Reino Unido na esperança de desacreditar forças nacionalistas e iliberais na UE. Em contraposição a isso, também precisam levar em conta o risco de um Brexit não negociado aprofundar a crise política e econômica da Europa, o que no fim das contas fortaleceria as forças populistas de esquerda e direita pelo continente.
A manifestação de sábado em Londres agregou um novo fator à equação. Será que UE deveria encorajar o impulso do movimento pró-europeu dentro do Reino Unido e, caso positivo, de que forma? Ou uma intervenção como essa sairia pela culatra? Não há respostas fáceis para os líderes da UE. Eles precisam perceber agora, no entanto, que suas decisões não vão afetar apenas o britânicos, mas a estabilidade de todo o continente europeu.

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