Autoisolamento coloca China diante de uma armadilha

O convidado mais importante à COP26 não compareceu. Como presidente da China, Xi Jinping comanda um país que emite mais CO2 do que os EUA e a União Europeia (UE) juntos. Mas, ao contrário de outros líderes mundiais, Xi não fez um pronunciamento na cúpula do clima. Em vez disso, apresentou um comunicado por escrito de menos de 500 palavras a ser publicado no site da conferência. 

A atitude indiferente de Xi sobre a discussão climática foi muito menos típica de Império do Centro e muito mais de dedo do centro. Mas a recusa do líder chinês de viajar para Glasgow para a COP26 – ou, antes dela, para a cúpula do G-20 em Roma – é parte de um comportamento mais amplo de autoisolamento nacional. 

Em reação à pandemia da covid-19, a China instaurou um dos sistemas mais rígidos de controle de fronteiras e de quarentenas. Estrangeiros ou cidadãos chineses que ingressam no país têm de entrar em rigorosa quarentena de um mínimo de duas semanas. São adotados controles adicionais se eles ingressam em Pequim, que abriga a liderança do país. 

O sistema, na prática, tornou impossível para estrangeiros fazer uma visita à China sem permanecer por vários meses, e, para a maioria da população chinesa, viajar ao exterior. O próprio Xi não sai da China há quase dois anos. A última vez em que ele foi em uma reunião com o presidente do Paquistão em Pequim, em março de 2020. A reunião de cúpula de Xi com o presidente dos EUA, Joe Biden, marcada para breve, será realizada por vídeo. 

Quando boa parte do planeta estava sob lockdown, a natureza extrema das medidas da China parecia menos fora do comum. Mas, à medida que a maior parte do mundo volta a algo próximo à normalidade, o autoisolamento da China parece mais estranho. 

Seus efeitos sobre os negócios internacionais já se fazem notar. A China continua a negociar e a investir no mundo externo. Mas seus laços comerciais estão se esgarçando. As câmaras de comércio estrangeiras na China relatam que executivos estão saindo do país sem serem substituídos. O papel de Hong Kong como centro comercial mundial saiu abalado. 

A liderança chinesa pode, na verdade, ver com bons olhos alguns desses desdobramentos. A professora-visitante Yu Jie, da Chatham House em Londres, argumenta que a pandemia permitiu que Xi acelerasse um percurso que já vinha tomando – na direção da autossuficiência nacional. 

Mas, com a covid-19, a ênfase na independência econômica se tornou um movimento de introversão muito mais amplo – com implicações perigosas para a China e para o mundo. A ascensão extraordinária da China nos últimos 40 anos foi desencadeada pela adesão de Deng Xiaoping à “reforma e abertura”, na década de 1980. Deng viu que o isolamento da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung levara à pobreza e ao atraso. Foi humilde o suficiente para perceber que a China poderia aprender com o mundo externo. 

A mídia chinesa retrata o Ocidente, e os EUA em especial, como em processo de decadência inexorável. O governo chinês acredita que o país está bem à frente em algumas tecnologias fundamentais do futuro, como tecnologia verde e inteligência artificial. Pode ser que Pequim considere que o mundo agora precisa mais da China do que a China do mundo. 

O controle da pandemia, além disso, também ficou estreitamente entrelaçado com a legitimidade política de Xi e do Partido Comunista. O saldo oficial de mortos na China é de menos de 5.000, comparativamente às 750 mil nos EUA. Pequim argumenta que, embora os EUA falem incessantemente em defesa dos direitos humanos, foi o PC chinês quem verdadeiramente protegeu sua população. 

Mas a política de covid zero da China pode se tornar uma armadilha. Num momento em que o mundo externo faz a transição para uma vida com baixos níveis da doença, o contato com os estrangeiros pode parecer ainda mais perigoso para a China – o que levará a uma nova ênfase em restringir a interação com o mundo externo. 

Mesmo o relaxamento dos controles internos na China é tarefa difícil, já que a variante delta levou à irrupção de surtos da doença em dois terços de suasprovíncias. A contenção desses surtos incentiva as piores tendências de controlemania do partido, que está usando a tecnologia para monitorar cidadãos cada vez mais estreitamente. 

Esse tipo de política draconiana causa algum debate público na China neste momento. Mas é pouco provável que os controles sejam relaxados no curto prazo. Nesta semana o Partido Comunista promoverá uma reunião que vai preparar o terreno para Xi prorrogar seu período no poder, em um Congresso partidário vital agendado para novembro de 2022. Após o congresso, a China se encaminhará para um inverno em que a incidência da doença pode crescer. Em decorrência disso, muitos especialistas acreditam que a política de covid zero da China persistirá até um bom período de 2023. 

Nessa fase, a China estará em isolamento autoimposto por mais de três anos. Os chineses e as economias mundiais tendem a sofrer em decorrência disso. Mas o maior e mais intangível efeito disso incidirá sobre a população chinesa. É muito mais fácil alguém acreditar que os estrangeiros são perigosos e decadentes quando nunca teve a oportunidade de conhecê-los. Quando a China acabar se abrindo, o mundo poderá se defrontar com um país muito mudado. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/11/09/autoisolamento-coloca-china-diante-de-uma-armadilha.ghtml

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