Por Pedro de Santi
Neste dia 24/06, volto às manifestações e às tentativas de compreendê-las. Neste momento, quando tudo está acontecendo há duas semanas e não se sabe que caminhos as coisas tomarão, cada reflexão só pode se fiar no instante em que se dá. E muito tem sido dito e publicado; até a exaustão dos leitores, não do assunto.
Muita coisa aconteceu nesta última semana e muitos dispositivos foram acionados, alguns para pensar, outros para reduzir. Ante a perplexidade geral, muitos tentam impor o selo “este filme eu já vi”, como forma de defesa contra a angústia, de restituir um sentido de potência ao próprio entendimento e despotencializar os acontecimentos. É preciso identificar o que haja de recorrente, mas o essencial é ficar de olho no que haja de único aí. É na singularidade que poderemos aprender algo e não apenas confirmarmos o que pensamos saber.
Tudo é desconcertante, partindo daquilo que disparou as manifestações. Governador e prefeito de partidos distintos (partidos que se opõem, mas que praticamente monopolizam o poder executivo nos últimos vinte e tantos anos) se uniram para anunciar um aumento de tarifas de transporte público com índices abaixo da inflação desde o último aumento. O plano era fazer bonito para as eleições de 2014 e não pressionar a inflação. Ironicamente, o Movimento Passe Livre (MPL) que existe há anos, dispara manifestações contra o aumento e elas se disseminam entre uma massa de jovens, pelas redes sociais.
Desconcertante é ainda, para quem esteja na faixa dos 30 anos para cima, darmo-nos conta de que partidos que nasceram na luta pela redemocratização do Brasil são, já há muito tempo, “situação”. O PSDB é situação no Estado de São Paulo há mais de 15 anos, o PT é situação do plano federal há 10. É patético ver membros de cada partido atribuindo a crise um ao outro. O buraco é mais embaixo e as agendas partidárias se distanciaram dele. É estranho ver a eclosão de movimentos populares que não passam pelo PT e, até mesmo repudiam sua tentativa de inclusão do partido nos mesmos.
Uma das chaves, penso, para a disseminação do movimento foi a transcendência da questão do reajuste dos preços do transporte para a captação de uma insatisfação geral. A inquietação difusa e sem pauta fechada permitiu que cada um encontrasse lugar para sua demanda. Não há um nome que unifique o movimento. Não se usou máscaras de líderes históricos de lutas sociais, usou-se o neutro V de vingança (e de ‘vago’). De poucos dias para cá, quando foram se configurando demandas mais particulares, diferenças e conflitos importantes passaram a aflorar no interior do movimento. Era inevitável. Talvez, agora, nasçam manifestações mais segmentadas ou, pior, confronto entre grupos. Isto já chegou a haver em São Paulo, quando um grupo com bandeiras de um partido foi hostilizado e expulso por outros manifestantes.
Quando os manifestantes faziam questão de dizer que eram apartidários, eu a princípio pensei: apartidários mas políticos, no melhor sentido do termo. Pode se tratar no nascimento de uma ação política e noção de cidadania entre jovens, de quem há tanto tempo reclamamos pela apatia. Hoje, penso que parte dos manifestantes seja de fato apartidária e apolítica. Quando se cobra que eles definam qual o foco das manifestações, talvez não se perceba que um foco esteja no ato mesmo de se manifestar, sair da frente do computador e estar na rua com os demais (levando um computador de mão através do qual se posta as coisas em tempo real). Por outro lado, talvez aquele anseio por ter a própria existência reconhecida através de posts, característico da cultura do facebook, tenha sido transplantado para a ação: ir para a rua pode ter se tornado um post(ar-se). Se isto fizer algum sentido, compreende-se a dimensão diária das manifestações sem bandeiras específicas. Uma existência criada no padrão do virtual depende de reafirmação contínua.
Esta massa de indivíduos, como o perdão da expressão, talvez seja a mais interessante. Ela representaria algo novo, com potencial de crescimento e politização. Ela denuncia que as coisas não estão lugar. Mas é exatamente ela que vem sendo mais duramente desqualificada. Muitos dizem que se trata de uma molecada de classe média (só eles tem acesso à internet), sem legitimidade popular. Muitos consideram que são uns perdidos, insatisfeitos que simplesmente “querem mais”. Esta leitura me parece cínica, pois há uma desqualificação a priori na qual não se admite que algo de interessante ou legítimo possa estar acontecendo. De outro lado, pela própria ausência de foco temático, os manifestantes tornam-se passíveis de serem manipuladas ou de estarem acobertando outros interesses que vêm de carona. O risco de serem “massa de manobra” ou “inocentes úteis” é muito grande. Todos vimos algumas entidades partidárias e de classe tentando se apropriar do movimento; todos vimos bandeiras altamente conservadoras se infiltrando; todos vimos saqueadores tirando proveito da situação. Já é tempo dos manifestantes darem um passo além daquela espontaneidade inicial e se perguntarem onde estão pisando, ao lado de quem, acobertando quem, etc.
Por outro lado, com o aumento da quantidade de gente envolvida e da violência, na semana passada, nasceram inúmeras “teorias da conspiração”. Cada um que se vê perdido e desentendido passa a ver num outro uma organização poderosa, criminosa e organizada conspirando contra seus valores. Para quem estuda a mente humana, a persecutoriedade é um dos sentimentos mais primitivos que habita a criança. Grande parte da obra de Melanie Klein (1882-1960) é dedicada a esta temática. A ausência do adulto cuidador, a fome e toda a forma de vazio não são vividos como tais, mas como fantasias de ataque e perseguição por um outro mau. Situações na vida adulta que nos desestabilizem e remetam à impotência e desorientação têm um grande potencial de redespertar em nós fantasias ou delírios paranoicos primitivos. Na quinta–feira passada, quando as manifestações em São Paulo estiveram mais calmas, mas no Rio e em Brasília estavam muito violentas, começaram a pipocar as teorias delirantes: vi posts com textos e vídeos revelando que as manifestações seriam causadas por uma grande conspiração dos comunistas Dilma, Serra, e Marina (?). De outro lado, na medida em que o foco se estabeleceu em Brasília, defensores do governo passaram a temer também por um golpe de direita.
A paranoia não pertence apenas ao campo da psicopatologia, Elias Canetti a considera uma doença intrínseca àquele que ocupa o poder. Em “Massa e poder” (1960), Canetti estudou a presença da paranoia na ideologia nacional-socialista. Ele observa que na paranoia se trata sempre de se defender e reassegurar de uma situação exaltada. O mesmo ocorre com o soberano, pela própria natureza do poder: se ele pode, cerca-se de soldados e se fecha em cidadelas. A percepção de complôs e conspirações também são partes essenciais que a paranoia compartilha com o detentor do poder. Ambos sentem-se cercados por um inimigo que não atacará só, mas mobilizará um bando odioso. Os membros deste bando se disfarçam, mas a força intelectual do paranoico os descobre. Uma das tarefas essenciais do paranoico é desmascarar aqueles que o perseguem.
Assim, quando os manifestantes se dirigem ao Palácio do Planalto- dizem ser apartidários, passam a usar símbolos nacionalistas e ter apoio da Globo (quando bonitinhos e cordatos)-, a leitura do governo federal foi rapidamente formulada de forma persecutória: golpe de direita. Acuados, chamamos de ‘antidemocrático” quem não concorda conosco. Muitos dos que simpatizavam com os manifestantes- reconhecidos até então como jovens manifestando legitimamente sua insatisfação e à procura de algo com o que sonhar- passaram a temê-los como jovens conservadores que aspiram tirar a presidente do poder, num golpe.
Em suma, ainda não estamos entendendo bem o que está havendo. Seguimos pensando e acompanhando os acontecimentos. Tem sido mais fácil entender as reações, estas sim velhas. O mais nocivo seria abrir mão de pensar e mergulharmos no cinismo ou no delírio: ele rompe nosso contato com a realidade e dispara nossa violência reativa.