1 milhão de Hong Kong contra 1 bilhão da China

Um milhão de pessoas saíram às ruas em Hong Kong para enfrentar policiais que pareciam soldados de videogame, com seus capacetes negros e reluzentes e toda sorte de blindados e armas. Por que tanta coragem de um lado e tanta dureza do outro? Para tentar entender, é preciso lembrar a estranha situação de Hong Kong. 
A cidade foi devolvida por Londres (a potência colonial) à China em 1.º de julho de 1997, com status de autonomia em relação à China segundo a famosa fórmula “um país, dois sistemas”. Um universitário local assinalou que “a declaração conjunta sino-britânica prometia à população de Hong Kong democracia no sentido mais pleno do termo”. 
Na verdade, esse emaranhado jurídico e político que é Hong Kong funcionou brilhantemente por anos, permitindo à cidade viver livremente e conhecer um dinamismo econômico e uma opulência que atraíram para ela as maiores corporações do mundo.
Houve evidentemente alguns sobressaltos, como a “revolta dos guarda-chuvas” de 2014, que paralisou por dois meses a cidade. O território semiautônomo retornou em seguida a sua vida normal e luxuosa sem que o movimento conseguisse o que queria: a eleição do chefe do Executivo pelo voto universal. 
Neste ano, foi precisamente a chefe pró-Pequim do Executivo, Carie Lam, que pôs lenha na fogueira, fazendo com que 1 milhão de pessoas fossem para a rua e denunciando em seguida “a ocorrência de tumultos organizados”. 
O gatilho da rebelião foi a intenção do Executivo de autorizar, por meio de uma emenda legal, a transferência de fugitivos para jurisdições com as quais Hong Kong não tem acordo de extradição, aí compreendidos Taiwan, Macao… e a China continental.
Todos os segmentos da população se levantaram contra essa emenda, incluindo pessoas que em geral não gostam de irritar Pequim, o grande empregador. Um dos atrativos de Hong Kong, do qual se beneficiam as empresas ali baseadas, é justamente seu sistema jurídico. 
O pretexto da emenda foi que o vazio jurídico havia impedido de mandar de volta para Taiwan um homem suspeito de assassinar a namorada. É um motivo sério. O que surpreende é que ele, sozinho, explique as marés humanas que submergiram Hong Kong.
Para entender a rebelião é preciso retornar à célebre revolta dos guarda-chuvas de 2014 e ao fracasso daqueles que exigiam que Pequim aceitasse a escolha do Executivo de Hong Kong pelo sufrágio universal. Esse fracasso jamais deixou de mortificar o consciente e o inconsciente dos moradores da cidade. 
Aliás, no movimento que há alguns dias ocupa as ruas veem-se aqui e ali guarda-chuvas amarelos, lembrando a rebelião de 2014 e sua principal reivindicação, então rejeitada por Pequim: a transformação de Hong Kong em uma democracia efetiva, particularmente com a eleição do Executivo pelo voto universal.
Os então rebelados, como os hoje senhores pequineses ainda traumatizados pela carnificina de Tiananmen, em 1989 (milhares de estudantes foram mortos pelos soldados chineses, que riam ao atirar neles), não insistiram. E Hong Kong voltou a seus dias laboriosos, suas noites feéricas e sua prosperidade luxuosa.
As águas continuaram a correr sob as pontes de Pequim. O presidente chinês, Xi Jinping, apertou o torniquete sobre a China, à medida que instalava um culto a sua personalidade que o levou recentemente a modificar a Constituição para poder prolongar seu reinado e sua autoridade por mais alguns anos. 
Eis porque os moradores de Hong Kong, ricos e pobres, opulentos e miseráveis, temem que a modificação da lei sobre a extradição seja apenas um sinal precursor de uma investida mais dramática, uma espécie de cortina atrás da qual está sendo preparada uma nova mudança para retirar de Hong Kong o alto grau de autonomia e a relativa democracia de que, milagrosamente, até hoje usufrui. 
Ao mesmo tempo, a economia chinesa cresceu, o que relativiza o interesse de Pequim por Hong Kong. A importância da cidade diminui à medida em que a economia da China dispara. Trinta anos atrás, Hong Kong representava 25% da riqueza produzida na China. Hoje, a região administrativa especial (RAE) não representa mais que 3% da economia chinesa. 
São esses alguns dos fatos não enunciados que explicam o pânico, e daí a cólera, dos habitantes de Hong Kong. O momento é dramático. Hong Kong conseguiu levar às ruas 1 milhão de moradores furibundos. É um número impressionante. Mas 1 bilhão de chineses não impressiona mais?

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