União Europeia se ergue à altura da crise da covid-19

A União Europeia (UE) nasceu da catástrofe e avançou em meio à crise. Atualmente, enfrenta ameaças em muitas frentes. Se não conseguir ficar à altura desses desafios, poderá até se estilhaçar. Felizmente, Angela Merkel entende isso. A chanceler alemã continua sendo a dirigente confiável do indispensável país europeu. Ao pactuar um novo plano financeiro radical com o presidente francês Emmanuel Macron, ela transformou as possibilidades da UE. 

Trata-se de mais um momento de fazer “o que for necessário”, desta vez da parte dos principais políticos europeus, o que confirma que a Alemanha e a França apenas deixarão a UE fracassar se seus eleitorados descartarem suas elites, como fizeram os americanos e os britânicos. Mas a história marcou as populações desses dois países profundamente demais para que eles corram o risco de optar por uma política na mesma medida infantil. 

Lembre-se da história da UE. A Comunidade do Carvão e do Aço e a Comunidade Econômica foram criadas em reação à Segunda Guerra Mundial. O mercado único foi uma resposta à doença econômica da década de 1970. A união monetária foi pactuada em 1991 em reação à unificação da Alemanha. A criação do Mecanismo de Estabilização Europeu e a transformação do Banco Central Europeu (BCE) em um banco central moderno foram resultados da crise financeira da zona do euro. 

Agora ocorre a catástrofe econômica da covid-19, com quedas numa velocidade sem precedentes na produção prevista para este ano e com uma recuperação incerta no futuro. Mas muito mais do que isso ameaça a UE. Um EUA nacionalista se voltou contra a própria ideia de integração da UE. O Reino Unido foi para o Médio Atlântico. A China e a Rússia embarcaram numa política de “dividir para governar”. O que talvez seja mais importante, a mal-administrada crise financeira da zona do euro dividiu os países-membros e direcionou a Itália, sobretudo, para uma posição contrária à permanência na UE. Pesquisa indica que em um plebiscito para aprovar ou não o “Italexit”, 42% dos italianos votariam atualmente pela saída. 

A covid-19 atingiu os membros da UE de maneira desigual, em termos de mortes e de efeitos econômicos previstos. Os prognósticos consensuais revelam que o Produto Interno Bruto (PIB) da Itália vai encolher 11% neste ano, em relação aos 7% da Alemanha. Provavelmente será ainda pior. O BCE está preparado para agir, a fim de manter os “spreads” sobre os títulos governamentais administráveis. Mas, num espantoso ato de afastamento em relação à ordem jurídica da UE, o tribunal constitucional da Alemanha solapou a credibilidade do BCE. 

É apenas contra esse pano de fundo perigoso que se pode entender a proposta dos dirigentes alemão e francês de um novo fundo de € 500 bilhões e a de um aumento subsequente, para € 750 bilhões, de autoria da Comissão Europeia, por meio da iniciativa que ela denomina “UE da Próxima Geração”. 

Como resposta à crise imediata, a iniciativa pode não ser decisiva. Mas, em termos do futuro de mais longo prazo da UE, trata-se de medida transformadora, do ponto de vista simbólico e prático se não o tão amplamente discutido “momento Hamilton”[em referência ao primeiro secretário do Tesouro dos EUA, de 1789 a 1795, que, após ter ingressado num governo falido, deixou, ao sair, os títulos do Tesouro dos EUA na condição de ativo seguro por excelência.] Esses dois dirigentes pretendem fazer o que for necessário para preservar a UE; isso, mais uma vez, deverá ser suficiente. 

A UE é vontade política tornada concretude institucional. No futuro imediato, a resposta à crise econômica virá, principalmente, das políticas fiscais nacionais, embora respaldadas pelo BCE. Mas este último, também, tem de receber nova injeção de ânimo vinda da proposta franco-alemã, que agora acabou indo para o novo plano da comissão. 

O novo fundo da comissão consiste de € 440 bilhões em subsídios (um elemento decisivo), € 60 bilhões em garantias e € 250 bilhões em empréstimos. Dois terços dos subsídios deverão ser distribuídos por meio de um “Instrumento de Recuperação e Resiliência”. Os recursos serão captados nas bolsas entre 2021 e 2024, para serem desembolsados ao longo de vários anos. Para situar os € 750 bilhões em contexto, o valor se aproxima de 1,5% do PIB da UE ao longo de três anos. 

Como argumentou Anatole Kaletsky, da consultoria econômica Gavekal, a proposta franco-alemã é muito mais significativa do que sugerem esses números relativamente modestos. Ela inclui duas inovações: a capacidade da comissão de tomar empréstimos por conta própria e assim criar uma nova categoria de bônus da UE; e o fato de que a tomada de empréstimo será financiada por impostos novos de âmbito pan-europeu sobre emissões de carbono e transações financeiras e digitais. A alavancagem sobre a arrecadação de impostos proporcionada pela capacidade de tomar empréstimos pode ser enorme. 

Se, por exemplo, a UE lançar um bônus irresgatável a 1% (uma suposição conservadora), poderá tomar € 100 bilhões emprestados, para sempre, sobre € 1 bilhão de receita anual. Isso é uma coisa muito impressionante. Mas não é, estritamente falando, um “momento Hamilton”, que faz referência à maneira pela qual Alexander Hamilton usou os poderes do governo federal americano para transferir as dívidas contraídas pelos Estados na Guerra da Independência para o balanço federal. 

No caso da UE, este não é um plano voltado para assumir dívidas. Além disso, de modo crítico, a UE não tem um processo político federal. As decisões orçamentárias têm de ser tomadas por unanimidade. No entanto, trata-se de um grande passo adiante do ponto de vista simbólico, ao demonstrar solidariedade, e do ponto de vista prático, ao criar um novo instrumento financeiro a ser custeado por impostos da UE. 

Independentemente do que possa não ser, este é um momento Merkel. Mais uma vez, essa política cada vez mais cautelosa tomou uma iniciativa decisiva. A UE está acuada por fora e por dentro. Será que essa proposta será suficiente para fazer frente a essas pressões? Assim espero. A ideia europeia foi uma resposta ao nacionalismo destrutivo. Ela tem de sobreviver. 

Martin Wolf é o principal comentarista econômico do Financial Times. 

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/ue-se-ergue-a-altura-da-crise-da-covid-19.ghtml

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