Rússia e China querem uma nova ordem mundial

Financial Times; Putin e Xi buscam reduzir o poderio global dos EUA e criar áreas de influência próprias nas suas vizinhanças. A crise na Ucrânia é parte dessa estratégia. Dez anos atrás, este relacionamento parecia improvável: China e Rússia eram tanto concorrentes como parceiras. Mas, após um período de persistentes disputas de ambos com os EUA, o respaldo de Xi a Putin reflete uma crescente identificação entre os interesses e visões de mundo de Moscou e Pequim. Segundo a mídia chinesa, Xi disse a Putin que “determinadas forças internacionais estão interferindo arbitrariamente nos assuntos internos de China e Rússia, a pretexto [de defender a] democracia e os direitos humanos”. 

Como deixaram claro as observações feitas por Xi a Putin, os líderes russo e chinês estão unidos pela convicção de que os EUA estão empenhados em levar a cabo um complô destinado a solapar e derrubar seus governos. No auge do período comunista, a Rússia e a China apoiaram forças revolucionárias no mundo inteiro. Mas agora Moscou e Pequim abraçaram a retórica da contrarrevolução. Recentemente, quando irrompeu a agitação no Cazaquistão, Putin acusou os EUA de tentarem patrocinar uma “revolução colorida” – expressão que designa movimentos de protesto que pretendem mudar o governo – em um país que tem fronteiras com a Rússia e a China. Altos ministros chineses corroboraram essas observações. 

A mão oculta de Washington. Aos olhos de Rússia e China, a revolta no Cazaquistão seguiu um padrão. O Kremlin argumenta há muito que os EUA são a mão oculta por trás da revolta da praça Maidan, na Ucrânia, de 2013-14, na qual o presidente pró-Rússia foi alijado do poder. A China também insiste que forças estrangeiras – leia-se, os EUA – estavam por trás dos grandes protestos de Hong Kong de 2019, que foram sufocadas pela repressão ordenada por Pequim. 

Tanto Putin quanto Xi também deixaram claro que acreditam que o objetivo final dos EUA é derrubar os governos russo e chinês e que as forças locais pró-democracia são o cavalo de Troia americano. 

Em 1917, o presidente dos EUA Woodrow Wilson falou em “tornar o mundo seguro para a democracia”. Em 2022, Putin e Xi estão determinados a tornar o mundo seguro para a autocracia. 

Mas as ambições de Rússia e China estão longe de serem só defensivas. Putin e Xi acreditam que sua vulnerabilidade a “revoluções coloridas” advém de falhas fundamentais na atual ordem mundial: a combinação de instituições, ideias e estruturas de poder que determina o desenrolar da política global. Em decorrência disso, eles compartilham a determinação de criar uma nova ordem mundial que acomode melhor os interesses de Rússia e China – como definidos por seus líderes atuais. 

Duas características da atual ordem mundial contra as quais os russos e os chineses se opõem frequentes são a “unipolaridade” e a “universalidade”. Colocando-se a questão de maneira simples, eles acreditam que a atual configuração dá excessivo poder aos EUA – e estão determinados a mudar isso. 

A “unipolaridade” significa que, após o colapso da União Soviética, o mundo ficou com apenas uma superpotência: os EUA. Fyodor Lukyanov, pensador russo de política externa muito próximo a Putin, acredita que a unipolaridade “deu aos EUA a capacidade e a possibilidade de fazer o que bem quisessem no cenário mundial”. Argumenta que a nova era da hegemonia americana foi introduzida pela Guerra do Golfo de 1991 – na qual os EUA reuniram uma coalizão mundial para expulsar as forças de Saddam Hussein do Kuait. 

A Guerra do Golfo foi seguida por uma sucessão de intervenções militares lideradas pelos EUA em todo o mundo – inclusive na Bósnia e em Kosovo na década de 90. O bombardeio de Belgrado, a capital da Sérvia, pela Otan, em 1999, é parte do argumento da Rússia de que a Otan não é uma aliança puramente defensiva. O fato de as bombas da Otan terem atingido a embaixada chinesa em Belgrado não foi esquecido por Pequim. 

Após os atentados terroristas de 11 de setembro em Nova York e Washington, a Otan invocou o Artigo 5 – sua cláusula de defesa mútua – e invadiu o Afeganistão. Mais uma vez, de acordo com Lukyanov, os EUA demonstraram sua disposição e capacidade de “transformar o mundo pela força”. 

Mas a derrota dos EUA no Afeganistão, simbolizada por sua caótica retirada de Cabul no fim de agosto, acalentou as esperanças dos russos de que a ordem mundial encabeçada pelos EUA esteja se esfacelando. Lukyanov argumenta que a queda de Cabul nas mãos do Talibã não foi “menos histórica e simbólica do que a queda do Muro de Berlim”. 

O pensamento de acadêmicos chineses influentes segue linhas semelhantes. Yan Xuetong, diretor da faculdade de relações internacionais da Universidade Tsinghua de Pequim (a “alma mater” de Xi), escreve que a “China acredita que sua ascensão ao status de grande potência lhe dá o direito de desempenhar um novo papel nos assuntos mundiais – um papel impossível de ser conciliado com um domínio incontestável dos EUA”. 

A exemplo de Lukyanov, Yan acha que “a ordem mundial encabeçada pelos EUA está desaparecendo… Em seu lugar entrará uma ordem multipolar”. O próprio presidente Xi colocou a questão de forma ainda mais sucinta ao afirmar, reiteradamente, que “o Oriente está em ascensão e o Ocidente, em declínio”. 

Para a Rússia e a China, a instauração de uma nova ordem mundial não é simplesmente uma pura questão de poder. É também uma luta entre ideias. Enquanto a tradição liberal ocidental promove a ideia dos direitos humanos universais, os pensadores russos e chineses argumentam que se deve permitir que diferentes tradições e “civilizações” culturais se desenvolvam de maneiras diferentes. 

Vladislav Surkov, no passado um influente assessor de Putin, criticou os “esforços repetidamente inúteis da Rússia de se tornar uma parte da civilização ocidental”. Em vez disso, segundo Surkov, a Rússia deveria abraçar a ideia de que “absorveu tanto o Oriente quanto o Ocidente” e que tem uma “mentalidade híbrida”. Na mesma linha, os pensadores pró-governo de Pequim dizem que uma fusão de confucionismo e comunismo permite concluir que a China sempre será um país que enfatiza o direito coletivo, e não o individual. Afirmam que o sucesso da China em deter a covid-19 reflete a superioridade da enfoque chinês na ação coletiva e nos direitos do grupo. 

Pequim e Moscou argumentam que a atual ordem mundial é caracterizada pela tentativa americana de impor ideias ocidentais sobre democracia e direitos humanos a outros países, se necessário por meio da intervenção militar. Em vez disso, a nova ordem mundial que a Rússia e a China exigem se basearia em esferas de influência diferentes. Os EUA aceitariam o domínio russo e chinês de suas vizinhas e abandonariam seu apoio à democracia ou às revoluções coloridas, que poderiam ameaçar os regimes de Putin ou de Xi. 

A crise em torno da Ucrânia é uma luta pela futura ordem mundial, por repousar exatamente sobre essas questões. Para Putin, a Ucrânia é cultural e politicamente parte da esfera de influência da Rússia. As necessidades de segurança da Rússia deveriam lhe dar o direito de vetar qualquer desejo da Ucrânia de aderir à Otan, a aliança ocidental. Moscou também exige a possibilidade de agir como protetor dos falantes da língua russa. Para os EUA, essas exigências infringem alguns princípios básicos da atual ordem mundial – em especial, o direito de um país independente definir sua política externa e suas escolhas estratégicas. 

A crise da Ucrânia envolve também a “ordem mundial” por ter claras implicações globais. Os EUA sabem que, se a Rússia atacar a Ucrânia e criar sua própria “esfera de influência”, estará fixado o precedente para a China. Durante a era de Xi, a China construiu bases militares em todas as áreas contestadas do Mar do Sul da China. Além disso, as ameaças de Pequim de invadir Taiwan – uma ilha democrática autogovernada, mas vista pela China como uma sua província rebelde – se tornaram mais abertas e mais frequentes. Se Putin conseguir invadir a Ucrânia, crescerá a tentação de Xi de atacar Taiwan, assim como a pressão interna sobre o líder chinês exercida pelos inflamáveis nacionalistas, ao sentirem  o fim da era americana. 

A Rússia e a China têm, sem dúvida, queixas semelhantes sobre a ordem mundial atual. Há também algumas diferenças relevantes entre os enfoques de Moscou e de Pequim. A Rússia está atualmente mais disposta a correr riscos militares do que a China. Mas suas metas finais podem ser mais limitadas. Para os russos, o emprego da força militar na Síria, Ucrânia e em outros países é uma maneira de repudiar a afirmação do ex-presidente americano Barack Obama de que a Rússia hoje não passa de uma potência regional. Dmitri Trenin, do Carnegie Center de Moscou, argumenta que, “para os líderes do país, a Rússia não é nada se não for uma grande potência”. 

Mas, enquanto a Rússia aspira a ser uma das grandes potências mundiais, a China parece contemplar a ideia de substituir os EUA como a principal potência do mundo. Elizabeth Economy, autora de um novo livro intitulado “The World According to China” (o mundo de acordo com a China), argumenta que Pequim visa uma “ordem internacional modificada radicalmente”, na qual, em suma, os EUA são empurrados para fora do Pacífico e se tornam apenas uma potência atlântica. Como a região do Indo-Pacífico é hoje o núcleo da economia mundial, na prática isso deixaria a China na posição de “número um”. Rush Doshi, estudioso da China que trabalha na Casa Branca, segue linha semelhante em seu livro “The Long Game” (o jogo longo). Ele cita várias fontes chinesas para defender a ideia de que hoje a China busca claramente uma hegemonia mundial no estilo americano. 

Uma aposta pela supremacia mundial. A diferença na escala das ambições da China e da Rússia reflete a diferença de seus potenciais econômicos. Hoje o tamanho da economia da Rússia corresponde aproximadamente ao da Itália. Moscou simplesmente não tem riqueza suficiente para sustentar uma tentativa de disputar a supremacia mundial. Em contraposição, a China, segundo algumas estimativas, é a maior economia do mundo. É também a maior potência industrial e a maior exportadora. Sua população de 1,4 bilhão de pessoas é cerca de dez vezes a da Rússia. Consequentemente, para a China é realista aspirar a ser o país mais poderoso do mundo. 

Embora as diferenças entre o potencial econômico da Rússia e da China em última instância tornem Xi mais ambicioso do que Putin, no curto prazo também o tornam mais cauteloso. Há algo de desespero de jogador compulsivo na disposição de Putin de usar a força militar para tentar mudar o equilíbrio de poder na Europa. Trenin diz que, depois de ver a Otan se expandir para boa parte do que foi o bloco soviético, Putin vê a Ucrânia como sua “última trincheira”. 

Em Pequim, por outro lado, existe uma forte sensação de que o tempo e a história estão do lado da China. Os chineses também têm muitos instrumentos econômicos para expandir sua influência, que simplesmente não estão disponíveis para os russos. Um projeto característico dos anos Xi é a Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI, na sigla em inglês), um vasto programa internacional de obras de infraestrutura financiadas pela China que se estende para Ásia Central, África, Europa e América. 

Como os EUA se tornaram mais protecionistas, a China também vem usando seu poder no comércio para ampliar sua influência global. Em janeiro foi lançada a Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), uma nova e vasta área de livre comércio na região Ásia-Pacífico que inclui a China e vários aliados estratégicos americanos, como Japão e Austrália – e da qual os EUA não participam. Permitir ou negar acesso ao mercado chinês dá a Pequim uma ferramenta para exercer sua influência de que Moscou simplesmente não dispõe. 

Mas o gradualismo funcionará? Ou a Rússia e a China precisam de algum tipo de momento dramático para criar a nova ordem mundial que buscam? 

A história sugere que em geral novos sistemas de governo para o mundo surgem depois de algum tipo de acontecimento político de proporções catastróficas, como uma grande guerra. 

Grande parte da arquitetura institucional e de segurança da atual ordem mundial surgiu no fim da 2a Guerra Mundial ou logo depois, quando a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) foram criados e suas sedes estabelecidas nos EUA. O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt, na sigla em inglês) entrou em vigor em 1948. A Otan foi criada em 1949. O Tratado de Segurança entre os EUA e o Japão foi assinado em 1951. A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, a precursora da União Europeia (UE), também foi fundada em 1951. Com o fim da Guerra Fria, instituições rivais patrocinadas pelos soviéticos, como o Pacto de Varsóvia, entraram em colapso, e a Otan e a UE se expandiram até as fronteiras da Rússia. Em 2001 a China aderiu à Organização Mundial do Comércio (OMC), a sucessora do Gatt. 

A questão hoje é se as ambições da Rússia e da China de estabelecer uma “nova ordem mundial” também precisarão de uma guerra para se concretizar. Um conflito direto com os EUA é simplesmente muito perigoso na era nuclear e não acontecerá a menos que todos os lados cometam erros de cálculo muito graves (o que sempre é possível). 

Mas Rússia e China podem achar que serão capazes de concretizar suas ambições por meio de guerras por procuração. Uma vitória russa sem oposição na Ucrânia poderia sinalizar o surgimento de uma nova ordem em termos de segurança na Europa, com uma “esfera de influência” russa de fato. Uma invasão chinesa bem- sucedida de Taiwan seria interpretada como um sinal de que a era do domínio americano no Pacífico teria chegado ao fim. Nesse caso, muitos países da região que hoje se apoiam nos EUA para sua segurança, como Japão e Coreia do Sul, podem optar por se acomodar numa nova ordem dominada pela China. 

Como alternativa, uma nova ordem mundial poderia surgir por meio da concordância tácita de Washington. Esse resultado parece improvável no governo do presidente Joe Biden, a menos que os EUA façam algumas concessões drásticas de última hora a respeito da Ucrânia. Mas Donald Trump pode voltar à Casa Branca em 2024. Pelo menos retoricamente, ele parece simpatizar com vários aspectos da visão de mundo russo-chinesa. 

O ex-presidente dos EUA denegriu a Otan em algumas ocasiões e sugeriu que os aliados dos EUA na Ásia eram aproveitadores. Sua filosofia “EUA em 1o lugar” passou longe do discurso tradicional sobre uma missão dos EUA de sustentar a liberdade em todo o mundo. Em certos momentos, ele também manifestou francamente sua admiração por Xi e Putin. E, como um autoproclamado grande negociador, Trump é simpático à ideia de esferas de influência. 

Mas Rússia e China não parecem dispostas a sentar e esperar que Trump volte à Casa Branca. Sabem que mesmo o Partido Republicano de Trump tem muita gente linha-dura decidida a buscar o confronto com a Rússia e a China. De qualquer forma, muita coisa pode acontecer daqui até a próxima eleição presidencial dos EUA, prevista para novembro de 2024. 

A impaciência da Rússia fica clara com a disposição de Putin de forçar uma crise a respeito da Ucrânia. As perspectivas de uma nova ordem mundial que agrade mais à Rússia podem depender de que sua aposta ucraniana dê certo. Mas mesmo que Putin não consiga atingir seus objetivos na Ucrânia, a ameaça à ordem mundial liderada pelos EUA não desaparecerá. Uma China em ascensão, comandada por um ambicioso presidente Xi, garantirá isso. 

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/02/01/russia-e-china-querem-uma-nova-ordem-mundial.ghtml

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