Redefinindo as relações EUA-China

O governo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, está reavaliando a estratégia americana para a China. O “modus operandi” de Donald Trump era acuar a China em questões de comércio exterior, investimentos externos, ciberespaço, comércio eletrônico, propriedade intelectual, o mar do Sul da China, Taiwan e outras questões. Para piorar, o governo Trump optou por negociar com a China de modo bilateral, negligenciando aliados europeus, australianos e latino-americanos que compartilhavam de muitos dos temores dos EUA e teriam fortalecido o poder de barganha americano. 

O enfoque bombástico, independente, de Trump era, essencialmente deficiente. Ele parece ter pressuposto que suas políticas incomodariam a China ao ponto de ela não conseguir competir eficientemente com os EUA no campo econômico, político ou militar. Mas nenhuma medida americana é capaz de deter o crescimento chinês. Além disso, ao mesmo tempo em que seu governo tentava diminuir a China, negociava com ela bilateralmente, emitindo, assim, um sinal muito confuso para os chineses e para o restante do mundo. As políticas de Trump, sem dúvida, prejudicaram a China, mas não deixaram de prejudicar também os Estados Unidos. 

Embora a rivalidade sino-americana seja inevitável, ambos os governos sabem que uma guerra é impensável. Em vista do desejo da China de ser um membro respeitado da comunidade internacional, o enfoque americano mais satisfatório envolveria buscar cooperação e ganhos mútuos quando possível e restringir o confronto a questões vitais. 

Quando o confronto for necessário, muitas vezes seria preferível que os Estados Unidos agissem por meio de fóruns multilaterais. Além disso, fortalecer a capacitação dos Estados Unidos em pesquisa e desenvolvimento, investimento em capital humano e aumentar sua produtividade são medidas que alcançariam resultados muito mais satisfatórios do que tentar tolher o desenvolvimento chinês. 

Entre as questões prementes que exigem cooperação estão a mudança climática e outras questões ambientais, endividamento dos países em desenvolvimento e estabilidade financeira internacional. E, o que talvez seja o mais importante, um sistema de comércio multilateral aberto – respaldado por regras da Organização Mundial de Comércio (OMC) – beneficia toda a economia mundial, e certamente também a China e os Estados Unidos. 

Até o começo da década de 1980, a China era muito pobre e o crescimento de sua economia era anêmico, porque o governo desestimulava o comércio exterior e tentava produzir todos os bens internamente, na maioria em empresas estatais. Mas depois o país reverteu suas políticas comerciais e permitiu o empreendimento privado. Sua abertura para o mundo desencadeou uma transformação econômica notável. Tanto as exportações quanto as importações aumentaram rapidamente e se tornaram grandes impulsionadoras de crescimento, o que levou à elevação acelerada dos padrões de vida. O comércio internacional chinês cresceu muito mais rapidamente do que seu PIB real. 

Na década de 1990, já era evidente que tanto a China quanto a economia mundial se beneficiariam do acesso da China à OMC. Sua filiação, argumentavam muitos, garantiria a outros países que a nação asiática cumpriria as regras comerciais 

Em consonância com essa meta, a China baixou sua alíquota tarifária média de 40% em 1992 para 15% em 2000 (e ainda mais depois disso), e eliminou outras barreiras comerciais a fim de cumprir as regras da OMC, antes de se filiar à organização, em 2001. 

A China comemorou sua integração, e daí por diante cumpriu as decisões determinadas contra si mesma pelo mecanismo de resolução de conflitos da OMC melhor do que muitos outros países. Os Estados Unidos levaram à OMC muitas de suas queixas comerciais referentes à China, e tiveram ganho de causa na maioria delas. 

Enquanto isso, as exportações e o PIB da China continuavam a crescer aceleradamente. Em 2009, a China se tornou o maior país exportador do mundo e, em 2013, tinha a maior balança comercial mundial. Por seu lado, os déficits comerciais dos Estados Unidos com o mundo e com a China continuavam a aumentar. Após a posse de Trump, seu governo atacou a China e suas políticas comerciais sem recorrer a processos da OMC. 

Em 2018, Trump desfechou uma guerra comercial. Fez exigências inegociáveis – inclusive de que a China zerasse o déficit comercial bilateral por meio da importação de muito mais produtos americanos – e aumentou drasticamente as tarifas americanas sobre os produtos importados da China, na tentativa de conseguir o que queria. 

Economistas destacaram que o déficit comercial dos Estados Unidos com a China era um fenômeno macroeconômico, e não algo que pudesse ser reduzido por tarifas. Além disso, obrigar a China a se comprometer a importar mais commodities americanas, como soja, exigiria um “comércio administrado”, principalmente por estatais chinesas, de cujo comportamento o governo americano reclamava. E outros países desenvolveram grandes superávits comerciais bilaterais com os Estados Unidos: após os aumentos de tarifas determinados por Trump, as importações americanas de produtos originários de países como Vietnã substituíram alguns dos artigos procedentes da China. 

Os Estados Unidos e a China firmaram um acordo comercial “de fase um “ em janeiro de 2020, mas ele ficou muito aquém de atender às exigências de Trump. Nem mesmo as cláusulas pactuadas foram cumpridas. Sua guerra comercial foi, portanto, em última instância, um fracasso, que prejudicou tanto a China quanto os Estados Unidos. 

Atualmente as relações comerciais entre Estados Unidos e China são abertamente hostis, e os Estados Unidos não são, de forma nenhuma, a parte inocente. Mas ambos os países poderão começar a redefinir as relações com um acordo que restabeleça o papel de resolução de disputas da Organização Mundial de Comércio por meio da aprovação, pelos Estados Unidos, de novos juízes do Corpo de Recursos da OMC. 

O governo Biden poderia fazer mais um gesto de boa vontade ao se oferecer para anular as tarifas de Trump desde que a China adote medidas em retribuição. E, pelo fato de os conflitos em torno de questões como direitos de propriedade intelectual e comércio eletrônico poderem e deverem ser solucionados de maneira multilateral, os Estados Unidos deveriam levá-los à OMC em vez de fazer exigências bilaterais. Com sorte, um crescimento saudável da produtividade americana poderá possibilitar que a rivalidade sino-americana passasse a assumir bases menos pautadas pelo confronto. 

Anne O. Krueger, ex-economista-chefe do Banco Mundial é professora da Universidade John Hopkins

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/redefinindo-as-relacoes-eua-china.ghtml

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