Produtor paga para se livrar do petróleo

Produtores de petróleo nos EUA e no Canadá não sabem mais o que fazer com sua produção, não conseguem parar ou reduzir suficientemente a exploração dos campos, não têm comprador e nem capacidade de estocagem para guardar seu petróleo. Nesse cenário, produtores pagam para se desembaraçar da produção. E quanto mais a capacidade de estocagem de petróleo ficar saturada, mais o preço do barril vai continuar baixo. A cotação da principal matéria-prima mundial continuará limitada mesmo por algum tempo depois que a demanda começar uma retomada. 

A avaliação é de Antoine Halff, ex-analista chefe da Agência Internacional de Energia (AIE) para o setor de petróleo, hoje pesquisador no Center on Global Energy Policy, da Universidade de Columbia (EUA), e analista-chefe da Kayrros, uma empresa de “data analytics” na área de energia. 

Apenas nesta semana, a cotação do contrato para junho do Brent, referência mundial, caiu cerca de 35%, fechando ontem a US$ 19,33 o barril. O contrato de maio do WTI, referência do mercado americano, registrou na segunda-feira, na véspera de expirar, fechamento negativo em US$ 37. Ontem, o contrato mais ativo do WTI, o de junho, caiu 43,36%, a US$ 11,74. 

A seguir os principais trechos da entrevista de Halff ao Valor.
Valor: O desmoronamento brutal do preço do petróleo era previsível? 

Antoine Halff: Sim, estava previsto levando-se em conta o “crash” da demanda. Houve um acordo que podemos chamar de histórico entre a Arábia Saudita, Rússia, EUA e outros países para cortar a produção. Mas nenhum corte de produção é suficientemente rápido para compensar inteiramente a perda da demanda e evitar um aumento dos estoques que provoca inevitavelmente uma baixa do preço. 

Valor: O que vai ocorrer agora no mercado internacional de petróleo? 

Halff: Vamos continuar a ter um crescimento de estoques, porque continuamos a produzir mais petróleo do que podemos consumir. Os produtores vão ser obrigados a baixar sua produção, seja no âmbito do acordo da Opep+, seja simplesmente por falta de mercado em resposta à queda de preço. Veja, na Kayrros seguimos a atividade em campos de petróleo com imagens de satélite, geolocalização, e vemos uma baixa muito importante nos EUA na atividade do petróleo “shale”. No Canadá, detectamos também sinais de baixa. Na Arábia Saudita, igualmente há indicações de mudança no nível de produção. A reação no nível da oferta de petróleo se faz sentir. Mas tem o efeito de retardo e não pode se sente que seja bastante rápida [o suficiente] para impedir a baixa brutal atual do preço. 

Valor: O preço negativo do petróleo nos EUA pode perdurar? 

Halff: Esses preços negativos significam que produtores não sabem mais o que fazer com seu petróleo. Conseguir parar ou reduzir suficientemente a produção. Não tem nem comprador nem capacidade de estocagem para guardar seu petróleo. Então, eles pagam para se desembaraçar da produção. Hoje, isso se passa em algumas partes dos EUA. Já observamos essa situação há duas semanas em Wyoming [nos EUA] e no Canadá. Mais a capacidade de estocatagem torna-se saturada, mais os preços vão baixar. Mas preço negativo não pode durar muito. 

Valor: Como funciona o preço negativo? 

Halff: O preço do petróleo físico é determinado em relação a “benchmark” (referência), como Brent e West Texas Intermediate (WTI). O Canadá tem um benchmark local, o Western Canadian Select (WCS). O que temos visto é que o diferencial entre o preço do petróleo físico e futuro aumentou muito. No Canadá, há vários dias vemos o petróleo físico ser vendido com desconto em relação à cotação futura, de tal forma que o preço é negativo. Assim, o WTI aponta US$ 15 o barril, mas um produtor vende ao preço WTI menos 17%, portanto o preço é negativo. No Canadá, foi o próprio benchmark (WCS) que passou ao negativo, não foi só uma produção bem específica. O problema para os produtores é que é muito custoso parar a produção. Há um risco de não reiniciá-la. Por exemplo, no caso de um poço bastante velho, em campos que estão em fim de vida e onde a pressão pode ser fraca. Se parar a produção do poço, o risco é de provocar uma despressurização do campo a tal ponto que não se pode mais retomar a exploração e será muito custoso injetar artificialmente muita pressão. No Canadá, outro problema é que instalações industriais tem aparelhos Steam-assisted gravity drainage (SAGD), que são muito caros e muito delicados. E deve constantemente ter um equilíbrio entre o vapor no poço e o fluxo de petróleo. É muito difícil ou mesmo impossível desacelerar essas maquinas. E é difícil ter grandes investimentos no longo prazo, levando-se em conta as incertezas sobre o futuro do petróleo e preocupações crescentes ligadas à fatura climática da produção. O Canadá é um produtor percebido como tendo pegada ecológica bastante forte. 

Valor: As falências vão aumentar no petróleo “shale” nos EUA? 

Halff: Nos EUA, a situação é bastante diferente, porque o petróleo do “shale” pode ser parado ou abrandado relativamente fácil, tem ciclo de produção bastante curto. Pode hoje tomar decisões de investimentos que em curto prazo vão afetar ou limitar a produção sem colocar em jogo a produção futura da mesma maneira. Algumas companhias já declararam falência. Mas nos EUA uma falência não é uma sentença de morte para a companhia, e menos ainda para o recurso natural associado a essa companhia. Se ela entra em falência hoje, vai sem duvida continuar a produzir a custo de produção mais baixo. A falência permite ajustar os custos de produção à baixa. Às vezes, no “shale” americano, a falência ou dificuldade financeira de empresa pode conduzir a uma reestruturação. Em 2014-15 já houve uma fase de consolidação, e isso pode se acelerar agora. Vamos ver as grandes empresas como Exxon e Chevron aumentarem seus portfólios de “shale” em detrimento de pequenos produtores. No fim, quando a crise tiver passado, o petróleo americano será sem duvida mais competitivo e mais eficiente na produção. Haverá pequenas empresas que vão desaparecer, mas o petróleo americano vai sair ganhador dessa crise. 

Valor: Isso se repetirá em outras regiões?
Halff: O petróleo canadense terá mais dificuldades. E os velhos campos britânicos no Mar do Norte vão sem duvida sair 

enfraquecidos da crise.
Valor: E a Arábia Saudita, como fica? 

Halff: Essa queda brutal no preço do barril provoca dificuldades orçamentárias, e a Arábia Saudita depende de sua renda petroleira. Mas o país tem reserva financeira e o custo de produção mais baixo do mundo, inferior a US$ 10 [o barril]. Outra vantagem é que a pegada ecológica de seu petróleo é relativamente baixa. No mundo futuro, onde a questão climática vai ter muita importância no suprimento energético e no investimento, a Arábia Saudita está bem colocada para sobreviver. Ela vai se beneficiar dessa crise. 

Valor: A Arábia Saudita não exacerbou essa crise, com produção elevada, para atacar o “shale” americano? 

Halff: Não acho que o petróleo “shale” seja particularmente visado, e sim a concorrência em geral, incluindo os produtores mais frágeis. Hoje, os EUA, por sua importância como produtor petroleiro, tornaram-se mais um aliado do que um concorrente de Arábia Saudita. E juntamente com a Rússia, sendo os três maiores produtores do mundo, eles compartilham os mesmos interesses petroleiros, têm custos de produção baixos, são competitivos e tem grande parte do mercado. Modulando sua produção, cortando ou aumentando, eles têm muito impacto no mercado e uma lógica de produtor dominante. É uma dominação energética compartilhada, que tem suas vantagens, mas também seus custos. E o custo é que às vezes, em período de preço fraco, tem que cortar a produção para remontar a cotação. 

Valor: Até quando os preços vão continuar baixos ou diminuindo? 

Halff: Difícil dizer. A China, o maior importador mundial, voltou a importar mais. Mas não sabemos se sua demanda vai crescer, estabilizar ou mesmo ter uma nova baixa, porque a China pode ser confrontada a uma segunda onda de coronavirus. Além disso, o confinamento nos outros países reduz o mercado para suas exportações. Não sabemos ainda qual será o ritmo da retomada econômica. O leque de previsões é muito amplo. Assim, vamos continuar a ver uma baixa de preço do petróleo porque, mesmo se a demanda for retomada, não vai ser de um só golpe. Veja, o petróleo que consumimos não é o petróleo que sai do campo. Há toda uma atividade de refinaria, e essa cadeia de transformação, de logística, tem efeitos retardado. 

Valor: Ao seu ver, como fica o pré-sal brasileiro no cenário atual? 

Halff: No pré-sal o custo de investimento inicial é elevado, mas o custo variável é relativamente baixo. Desse ponto de vista o Brasil é competitivo. Mas hoje, como a demanda é muito fraca, mesmo um produtor competitivo não tem vantagem de produzir. O Brasil prometeu [à Opep] uma baixa de produção relativamente importante. Mas o Brasil está bem posicionado para o futuro quando a demanda retomar. Tem um petróleo de qualidade, procurado e num mercado positivo é uma fonte atraente. 

Valor: Resumindo, quem ganha e quem perde hoje no mercado de petróleo? 

Halff: No curto prazo, ganham os que têm acesso a capacidade de estocagem, podem comprar petróleo a preço baixo ou mesmo ser pago para pegá-lo, e depois vender a preço mais elevado. Todos os outros no curto prazo perdem, incluindo o consumidor, porque não pode aproveitar o preço baixo, já que o “lockdown” os impede de consumir. Mais no longo prazo, quando for necessário reiniciar a atividade econômica, a cotação baixa do petróleo será uma vantagem para o consumidor e para os grandes produtores, que tem custos de produção baixos, como Arábia Saudita, Rússia e mesmo os EUA. Os três poderão reconquistar mais fatias de mercado. Os perdedores incluem produtores que não têm muitos recursos financeiros para compensar a perda de renda. É o caso da Argélia, Nigéria… A retomada dos preços será progressiva, porque a economia sairá da crise bastante enfraquecida e haverá enormes estoques que vão ser utilizados. Cenário de reprise econômica lenta é mais realista e mais difícil para países como Canadá, Argélia, Venezuela, Nigéria, também talvez para uma parte do Mar do Norte e mesmo para uma parte da Rússia com alguns campos de petróleo menos competitivos. 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/22/produtor-paga-para-se-livrar-do-petroleo.ghtml

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