Precisamos do FMI para regular a internet?

Há 75 anos, quando a Segunda Guerra Mundial se aproximava do fim, representantes nacionais dos aliados reuniram-se em Bretton Woods, Estado de New Hampshire, para criar o marco regulador do sistema monetário internacional.
Na época, presumiram que monitorar o dinheiro era crucial para fomentar a 
paz e o crescimento. Nenhuma surpresa nisso, talvez: depois da guerra, havia
 a necessidade urgente de promover o reaquecimento da economia mundial 
por meio de instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário
 Internacional (FMI). E, apesar de todos os solavancos nas décadas seguintes, foi o que se conseguiu. Quando o FMI e o Banco Mundial realizaram seus encontros de primavera neste mês, o centro da capital, Washington, estava enfeitado com pôsteres celebrando os “75 anos de cooperação”.
Em meio às celebrações, porém, vale a pena perguntar-se: Chegou a hora de o FMI pensar mais além do dinheiro? Jim Balsillie, ex-coexecutivo-chefe da Research in Motion (RIM), a empresa canadense por trás do BlackBerry, acha que sim.
Será que os responsáveis por criar as políticas podem aprender as lições da história financeira e criar mecanismos para uma coordenação mundial para o mundo digital antes – e não depois – do impacto de algum choque? A história sugere que não
Em 2018, o FMI promoveu um seminário para falar sobre a nova economia digital. Durante as discussões (das quais eu também participei), Balsillie fez um apelo inédito: disse que era hora de o FMI ajudar a coordenar as regras mundiais sobre dados e criar uma estratégia internacional conjunta para lidar com o impacto da tecnologia.
A ideia pode soar estranha para economistas, que estão acostumados a ter foco no dinheiro. Mas atualmente, argumenta Balsillie, o fluxo de dados impulsiona a economia mundial tanto quanto as finanças – a tal ponto que os dados muitas vezes são descritos como o “novo petróleo” em termos de criação de valor. “Em 1976, 16% do valor do S&P 500 era de intangíveis, [mas] hoje os intangíveis representam quase 90% do valor total do S&P”, destacou.
Isso torna a governança dos dados uma questão fundamental para as políticas econômicas. O que se vê a esse respeito, contudo, são divergências aparentemente insolúveis entre Estados Unidos, Europa e China, com potencial para destruir a internet. Na verdade, os riscos são tão altos que grandes nomes do Vale do Silício, como Eric Schmidt, ex-chefe do Google, alertaram para o risco de estarmos nos dirigindo a uma “splinternet” (união das palavras “estilhaço” e “internet”, em inglês), uma rede fragmentada por barreiras nacionais.
Portanto, assim como o FMI e outras organizações empenharam-se em criar regras para o dinheiro que promovessem o crescimento, agora elas deveriam fazer o mesmo para os dados. “Nada menos que um encontro histórico entre os principais tomadores de decisão vai [ser suficiente para] criar um novo marco mundial […] para a economia movida a dados”, disse Balsillie à chefe do FMI, Christine Lagarde, enquanto convocava “um novo momento Bretton Woods”.
Duvido que essa ideia alguma vez decole (embora a própria Lagarde tenha sido delicada o suficiente para não dizê-lo na ocasião). O FMI já está com as mãos ocupadíssimas cuidando de seus problemas econômicos e financeiros tradicionais, além de ser composto por economistas, não por especialistas em tecnologia.
Também não está claro se mesmo a astuta Lagarde seria capaz de colocar todas as vozes no mesmo tom para chegar a um acordo quanto aos dados – mesmo se quisesse. A iniciativa original de Bretton Woods foi criada por 44 aliados que travaram juntos uma guerra. Hoje, a maior probabilidade é a de que rivalidades geopolíticas, mais notavelmente entre China e EUA, ofusquem qualquer sentido de propósito comum.
Ainda assim, acho que seria um erro deixar de dar ouvidos ao apelo de Balsillie, por pelo menos dois motivos. Primeiro, todos precisamos reconhecer como a revolução digital está mudando radicalmente nossa ideia do que a economia é – e de como o valor é criado em uma era na qual os dados são quase tão importantes quanto o dinheiro.
Em seu mais recente relatório Panorama Econômico Mundial, divulgado neste mês, o FMI ressalta estar alarmado com o poder monopolista das grandes empresas de tecnologia, por temer que isso possa prejudicar o crescimento e a inovação no futuro.
Segundo, a sugestão de Balsillie expõe problemas muito mais amplos sobre a governança mundial. Talvez seja estranho imaginar o FMI determinando padrões internacionais para os dados. Mas o que é ainda mais estranho – e mais alarmante – é que nenhuma outra instituição esteja realmente em posição de fazê-lo.
Em teoria, a Organização das Nações Unidas (ONU) supostamente teria algum poder de supervisão sobre a internet. Na prática, porém, é burocrática e praticamente não tem garras, de forma que seu principal objetivo é alimentar as discussões sobre as políticas a serem seguidas. Embora existam organizações menores lutando bravamente para preservar a arquitetura básica da internet – como a Corporação para a Atribuição de Nomes e Números na Internet (Icann, na sigla em inglês) – elas tendem a ter foco em nichos.
O que a internet carece, em outras palavras, é de algo parecido a uma rede de bancos centrais, ou às instituições de Bretton Woods, capaz de fazer para os dados o que esses órgãos fazem pelo dinheiro – a saber, lutar para mantê-lo fluindo pelo mundo mesmo diante das tensões geopolíticas. Em parte, isso se dá pelo próprio formato da internet: os técnicos por trás da rede mundial de computadores se propuseram a construir uma rede descentralizada e nutriam desconfianças quanto a controles governamentais.
Também se dá, porém, porque nossa economia digital ainda é muito jovem: até agora não houve o tipo de choque catastrófico (um colapso completo da rede, digamos, ou um ciberataque em massa) que possa forçar países concorrentes a cooperar. Bretton Woods, afinal, foi uma resposta à Segunda Guerra Mundial. O Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) nasceu a partir do pânico com as finanças.
Será que os responsáveis por criar as políticas podem aprender as lições da história financeira e criar mecanismos para uma coordenação mundial para o mundo digital antes – e não depois – do impacto de algum choque? A história sugere que não. Mas a menos que isso aconteça, continuará existindo o problema de que os dados, assim como o dinheiro, fazem nosso mundo girar, mas, ao contrário do dinheiro, têm poucos mecanismos internacionais de cooperação. O FMI pode não ser o órgão mais óbvio para isso; mas se não ele, então, quem?

https://www.valor.com.br/opiniao/6220347/precisamos-do-fmi-para-regular-internet#

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