Os dilemas da trajetória digital da Disney

Em seu 97o ano de existência, a Walt Disney Company decidiu que seu futuro na TV está no streaming. Mas o que será feito de seu passado? 

A Disney Plus tem sido um sucesso, com mais de 70 milhões de assinantes em seu primeiro ano, apontando o império de Mickey Mouse como sério concorrente da Netflix, cujo chefe, Reed Hastings, esperava que seu novo rival chegasse a 20 milhões de clientes “na melhor das hipóteses”. 

Enquanto o grupo se reorganiza em torno do streaming, também precisa lidar com o declínio de seus canais de TV e estúdios de cinema. Com uma visão de longo prazo, Bob Iger, presidente executivo e ex-CEO do grupo, disse recentemente a pessoas próximas que canais antes poderosos, como a ABC, estão “acabados” e o futuro da Disney estava no streaming e nos parques temáticos. 

Mas, ao contrário da deficitária Disney Plus, os canais de TV ainda geram bilhões de dólares por ano ao grupo. 

O dilema deixou a Disney com uma estratégia desigual para os canais como a rede de esportes ESPN e as redes de entretenimento que alimentam o Hulu, o serviço de streaming exclusivo dos Estados Unidos, do qual a Disney assumiu o controle no ano passado. Também revela que mesmo para a empresa de mídia tradicional mais bem posicionada do mundo, a transição para o streaming será acidentada e incerta financeiramente. 

A pandemia tirou US$ 7 bilhões do lucro operacional da Disney, mas suas ações subiram 3% em 2020, principalmente com base na promessa do streaming. Os investidores esperam que a empresa reforce seu compromisso em uma apresentação a acionistas prevista para quinta-feira, e dedique mais recursos para conteúdos de grande popularidade. 

“Por que o The Bachelor não estreia no Hulu?”, perguntou Rich Greenfield, sócio do grupo de pesquisa Lightshed, referindo-se ao programa de encontros da ABC, que tem grande sucesso. “A questão é: até que ponto o universo da TV precisa declinar antes que eles decidam começar a transferir seu conteúdo mais importante? Isso reformularia todo o seu sustento econômico.” 

Mas o dilema da Disney é que todas as opções para acelerar suas ambições digitais acarretam riscos financeiros e desafios práticos. 

Há dois anos, quando Iger e o alto executivo Kevin Mayer definiam os planos de streaming, uma pesquisa interna previu que oferecer a Disney Plus com o Hulu atrairia o maior número de assinantes. Só que eles não queriam deixar para trás a ESPN Plus, o serviço de streaming de vídeos esportivos lançado em abril de 2018 e que ganhara pouca força, de acordo com fontes familiarizadas com os planos. Assim, o grande lançamento de streaming da Disney no ano passado oferecia um pacote com Disney Plus, ESPN Plus e Hulu a US$ 13 por mês. 

Desde então, a ESPN Plus tem servido mais para ocupar um espaço reservado para futuros programas do que como um produto ativo, com a maior parte do novo conteúdo mantida na TV a cabo exclusivamente. O sucesso estrondoso da Disney Plus diminuiu o interesse da empresa no Hulu, de acordo com atuais e ex- executivos. 

O canal a cabo da ESPN perde telespectadores há bastante tempo. Este ano, teve em média 80 milhões de assinantes, abaixo dos 90 milhões de 2016. No ano passado, Iger e Mayer discutiram a transferência de parte da programação esportiva da ESPN para seu serviço de streaming em 2022, depois do fim dos contratos de licenciamento que exigem que os jogos sejam transmitidos no canal a cabo, de acordo com fontes. 

“Quando fecharam esses acordos, eles não esperavam que a ESPN fosse de 95 milhões de assinantes para 80 milhões”, disse um ex-executivo sênior da Disney. “No longo prazo, isso criou uma verdadeira dúvida sobre como a ESPN pode ser lucrativa.” 

Para igualar os lucros do canal a cabo, a ESPN Plus precisaria ter um preço de US$ 40 a US$ 45 por mês, de acordo com o ex-executivo-chefe de um serviço de streaming. No último trimestre, a ESPN Plus alcançou 10 milhões de assinantes, que pagaram em média apenas US$ 4,54 por mês. 

Canibalizar a ESPN só pioraria a situação dos canais a cabo que estão encolhendo, como a A&E, de propriedade conjunta da Disney e da Hearst. Em 2019, banqueiros prepararam opções para a Disney vender as redes A&E e Freeform, segundo fontes. A iniciativa não avançou e a TV a cabo só se deteriora cada vez mais. 

A Nat Geo foi integrada à Disney Plus e a FX, um canal de entretenimento mais arrojado, recebeu um “bote salva-vidas” digital por meio do Hulu. A Disney fechou o Disney Channel no Reino Unido e está arrancando dinheiro da A&E com a venda de direitos de licenciamento para o Discovery, para seu futuro serviço de streaming. 

Mas ainda que estejam em declínio, esses canais geram uma quantidade significativa de dinheiro. Neste ano até 3 de outubro, a Disney obteve US$ 6 bilhões em receitas operacionais com seus canais a cabo. 

Na opinião de Iger, o maior problema da Disney é dinheiro. Nos últimos meses ele disse a pessoas próximas que esta é a primeira vez que teve de conduzir a empresa com limitações de capital, já que as receitas de parques temáticos e cinemas tinham evaporado. 

Na quinta-feira, a Disney cortou cerca de 100 funcionários em suas divisões de TV e cinema, entre eles executivos veteranos da ABC. 

Com a liderança concentrada na proteção do balanço e armada com uma peça reluzente para agradar Wall Street – a Disney Plus -, o Hulu e a ESPN Plus se tornaram menos prioritários. Segundo fontes, o plano de lançamento mundial do Hulu foi descartado. 

Esta semana, na apresentação da empresa a investidores, todos os olhos estarão voltados para Bob Chapek, que se tornou CEO em fevereiro, poucas semanas antes de a pandemia golpear os negócios que mantêm a Disney próspera financeiramente. 

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/12/07/os-dilemas-da-trajetoria-digital-da-disney.ghtml

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