ONU negocia acordo com Rússia e Ucrânia para garantir exportação de grãos

Autoridades da ONU estão liderando negociações com Rússia e Ucrânia sobre um pacote de garantias para que os dois países possam exportar produtos alimentícios e fertilizantes retidos pela guerra. O esforço diplomático, anunciado pelo secretário-geral António Guterres vem em um momento em que Moscou e Kiev trocam acusações – e em que o risco do desabastecimento provocar uma crise alimentar só aumenta.

A Rússia impôs sua superioridade naval no Mar Negro desde o início da guerra, conquistando boa parte das cidades e portos ucranianos no sul do país. A reação de Kiev para impedir o avanço russo foi minar vias marítimas de acesso a seus portos, como o de Odessa, ainda sob controle ucraniano. As ofensivas e contraofensivas acabaram por criar um bloqueio no principal canal de escoamento de commodities ucranianas, ao mesmo tempo em que Moscou alega que as sanções internacionais prejudicam sua capacidade de exportação.

“Para as pessoas em todo o mundo, a guerra, juntamente com outras crises, ameaça desencadear uma onda sem precedentes de fome e miséria, deixando o caos social e econômico em seu rastro”, disse Guterres, acrescentando que os negociadores das Nações Unidas estão coordenando conversas com Moscou, Kiev, Ancara, Bruxelas e Washington, sem revelar detalhes sobre o andamento das discussões.

“Este é um daqueles momentos em que a diplomacia silenciosa é necessária e o bem-estar de milhões de pessoas em todo o mundo pode depender disso”, afirmou.

Embora os detalhes das rodadas de negociação não estejam claros, a movimentação dos principais atores russos e ucranianos não parece ir em direção a um consenso. Altos funcionários de Kiev e Moscou tem trocado acusações públicas sobre os interesses do lado oposto nas negociações, exigindo medidas que não desescalam o conflito.

Pressão política

O presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, pediu nesta quinta-feira, 9, a exclusão da Rússia da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). “Não pode haver nenhuma discussão sobre prolongar a adesão da Rússia à FAO. O que há para a Rússia fazer se está provocando a fome de pelo menos 400 milhões de pessoas, ou potencialmente mais de um bilhão de pessoas?”, questionou durante uma reunião da OCDE por videoconferência.

De acordo com Zelenski, há entre 20 e 25 milhões de toneladas de grãos bloqueados no país, quantidade que pode chegar a 75 milhões de toneladas no outono do Hemisfério Norte (primavera no Hemisfério Sul).

Moscou, em contrapartida, tenta minimizar o impacto de sua “operação militar especial” na Ucrânia no aumento do preço internacional de cereais. Na quarta-feira, 8, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, pediu para a comunidade internacional não “exagerar” a importância da produção ucraniana para o mundo.

“Não temos que exagerar a importância das reservas de cereais [ucranianos] nos mercados internacionais”, disse Peskov à imprensa. E acrescentou: “É uma porcentagem muito pequena para ter um impacto significativo na crise alimentar mundial, que já começou”.

Inflação dos alimentos

Embora admitam que outros fatores como a seca em determinadas partes do mundo estejam prejudicando a produção – e consequentemente o abastecimento – ao redor do mundo, organizações internacionais como o Banco Mundial apontam a guerra na Ucrânia como um fator que aumentou o custo de vida em todo o mundo, podendo perdurar por mais de uma geração.

Juntos, Rússia e Ucrânia respondem por cerca de 30% das exportações mundiais de trigo, enquanto, pouco antes da guerra, estava perto de virar o terceiro maior exportador mundial de trigo e representava metade do comércio mundial de sementes e óleo de girassol. As exportações mensais ucranianas representavam 12% do trigo mundial, 13% do milho e 50% do óleo de girassol.

“O efeito cumulativo dos ataques russos à Ucrânia e o bloqueio de seus portos no Mar Negro, bem como as sanções ocidentais às exportações russas, levaram à disparada dos preços em lugares distantes da zona de conflito. Nos países mais pobres da Ásia e da África, o custo de produtos básicos como trigo e óleo de cozinha disparou e criou novas tensões para as sociedades que menos podem comprá-los. Somente no Chifre da África, até 20 milhões de pessoas podem passar fome este ano em meio à escassez de alimentos e uma seca prolongada”, explicou o analista Ishaan Tharoor em artigo recente no The Washington Post.

Apesar dos riscos da aparente crise de desabastecimento, as retóricas russa e ucraniana parecem longe de chegar ao fim. Em uma viagem à Ancara, na quarta-feira, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, afirmou que a guerra na Ucrânia “não era a causa ou o catalisador da crise alimentar”. A chancelaria ucraniana respondeu à afirmação, apontando que “a verdadeira causa desta crise é a invasão russa, não as sanções”, nas palavras do ministro Dmitro Kuleba.

Enquanto isso, a proposta costurada por Turquia e Rússia para a criação de um corredor seguro no Mar Negro para permitir as exportações da Ucrânia seguem paralisadas. Lavrov se disse satisfeito com um acordo inicial que previa a retirada das minas ucranianas dos arredores do porto de Odessa – o que foi rapidamente refutado por autoridades de Kiev, que viram no plano uma jogada militar russa para ocupar os últimos territórios ainda sob domínio ucraniano.

A preocupação ucraniana é compartilhada por líderes ocidentais. Durante a reunião da OCDE em que Zelenski falou por videoconferência, o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, defendeu a continuidade das negociações, mas pediu que a Rússia oferecesse garantias de que os portos ucranianos não serão atacados.

“Precisamos desbloquear os milhões de toneladas de cereais que estão presos lá por causa do conflito. Os esforços de mediação das Nações Unidas e da Turquia são passos significativos”, afirmou Draghi.

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