O novo sentido do som

Às 23h do dia 10 de agosto, sem aviso prévio, Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes posicionaram-se em frente a uma câmera portátil e iniciaram uma transmissão ao vivo pelo Facebook. Ali, anunciaram que os Tribalistas lançariam imediatamente quatro músicas novas, que um disco sairia em breve e conversaram com os fãs. Quando o relógio indicava que havia passado da meia-noite, as faixas (“Um Só”, “Diáspora”, “Fora da Memória” e Aliança”) foram liberadas para serem ouvidas em diversas plataformas de streaming.

Motivo: a indústria da música faturou US$ 15,7 bilhões em 2016, dos quais US$ 4,56 bi saíram do streaming, aumento de 60,4% em relação a 2015

A estratégia havia sido desenhada no começo de abril. Durante dois dias, em um hotel no Rio, os três músicos, desenvolvedores e engenheiros do Facebook se reuniram com o objetivo de descobrir uma estratégia de impacto para promover o trabalho de um grupo que não lançava nada havia 15 anos – o primeiro (e então único) disco dos Tribalistas é de 2002.

Um requisito era fundamental: tinha de ser uma experiência imersiva completa para o ambiente do celular. A exigência não foi à toa. Segundo relatório recente da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI), em países como Brasil, México e Coreia do Sul, dois em cada três internautas usam o smartphone para consumir música, como mostrou matéria de Thiago Ney, para o Valor de 8/09.

A solução encontrada foi a criação de uma ferramenta batizada de “hand album”. Com ela, é possível ouvir trechos de áudios, ver a letra e a cifra das canções, créditos autorais e fotos de bastidores – como se fosse o encarte de um CD (ou de um LP) interativo. Mas o plano não estava finalizado. Ainda faltava amarrar uma ponta.

A indústria da música faturou US$ 15,7 bilhões em 2016 (aumento de 5,9% em relação ao ano anterior), também de acordo com os dados da IFPI. Desse total, US$ 4,56 bilhões saíram do mercado de streaming (aumento de 60,4% em relação a 2015). Ou seja: muito mais do que CDs e LPs e mais do que os downloads, é o streaming – quando os arquivos ficam armazenados não no computador ou no celular do usuário, mas em plataformas como Deezer, Spotify, Apple Music, YouTube – o formato que mais cresce para o consumo de música. As empresas não divulgam valores, mas cerca de 70% do arrecadado com as assinaturas e com a publicidade inserida vão para os donos dos direitos autorais e de fonogramas.

Cientes dessa paisagem, os Tribalistas foram atrás do Spotify, o maior serviço de streaming de áudio do mundo, com 140 milhões de assinantes (60 milhões desses possuem plano pago; no Brasil, custa R$ 16,90 por mês). Feita a parceria, o Spotify ficou encarregado de realizar, por meio da sua página no Facebook, a transmissão ao vivo do anúncio dos Tribalistas. E, dentro do “hand album”, o usuário poderia ouvir as quatro faixas por meio do streaming.

Já no dia 11 de agosto, os resultados começaram a ser comemorados. As quatro faixas novas dos Tribalistas entraram no Top 100 do Spotify (a lista das cem faixas mais ouvidas) e outras quatro, antigas, entraram no Top 200. “O número de ouvintes mensais dos Tribalistas aumentou 65%. Entre os usuários de 23 a 27 anos de idade, subiu 73%”, afirma Roberta Pate, responsável pelo relacionamento do Spotify com artistas e gravadoras. “O catálogo foi beneficiado pelo lançamento.”

Em 25 de agosto, o trio soltou as seis músicas restantes do disco, que, assim, como o LP de 2002, chama-se “Tribalistas”. “Em duas semanas, o ‘hand album’ teve mais de 15 milhões de acessos”, diz Christian Rôças, estrategista criativo do Facebook. Ele diz que equipes da rede social baseadas na Espanha e nos EUA estão desenvolvendo lançamentos dentro da ferramenta criada no Brasil.

“Desde que lançamos o primeiro disco, o mundo mudou muito, a revolução digital afetou a todos. Então teríamos de ser criativos”, afirma Marisa Monte ao Valor. “Nos últimos dois anos, pesquisei bastante sobre tecnologia. Essas empresas possuem dados muito claros, indiscutíveis, como a faixa etária de quem ouve as músicas, em quais locais estão, de que maneira ouvem. Isso é muito importante para nós.”

Além de criar uma experiência totalmente pensada para o ambiente do celular, os Tribalistas se valeram de outra característica que está mudando a maneira como as pessoas ouvem música atualmente: o formato de playlist.

As quatro faixas do primeiro lançamento foram distribuídas por diferentes playlists não apenas no Spotify, mas em outras plataformas de streaming. Na Deezer, que tem 12 milhões de assinantes pagos no mundo, faixas do trio entraram em listas como Lançamentos da Semana, Seleção Editorial, Abrasileirando Seu Dia e Brasil Anos 2000.

“Há uma grande diferença no consumo de música dentro das plataformas de streaming em relação ao modelo físico”, afirma Yasmin Muller, gerente editorial da Deezer. “O número de quem quer ouvir música por playlists é de duas a três vezes maior do que o número de quem procura diretamente por algum disco. As playlists são muito mais dinâmicas. É um espaço cativo de audiência, e o conteúdo vai mudando. Nós atualizamos as músicas, tiramos as que não funcionam.”

Na maioria das plataformas de streaming, as playlists podem ser feitas por algoritmos, pela equipe de editores/curadores de cada serviço e pelos próprios usuários. “Mas a maioria dos usuários não cria playlist. Prefere as que já estão feitas pela gente ou por amigos”, diz Bruno Vieira, diretor-geral da Deezer no Brasil.

As playlists por algoritmos normalmente são as que reúnem as faixas mais tocadas no dia, na semana ou no mês. Os editores se encarregam de alimentar as playlists por gênero (sertanejo, gospel, hip hop etc.) ou para serem ouvidas em uma situação específica (para correr, para dançar, para a academia etc.). Marisa Monte, por exemplo, ouve playlist quando sai à rua para correr. “Acho ótimo, bem prático, o algoritmo sabe do que eu gosto”, diz.

O Spotify tem três playlists criadas por algoritmos: Descobertas da Semana (sai toda segunda-feira, personalizada para cada usuário, com 20 músicas que ele nunca ouviu no Spotify); Radar de Novidades (atualizada às sextas-feiras, com 20 lançamentos baseados no que o usuário costuma ouvir no serviço); Daily Mix (diária, com número variado de faixas). Na

Deezer, além de playlists como a Top Brazil, que apresenta as cem mais tocadas, há o recurso Flow, uma trilha sonora personalizada, baseada em algoritmo, com as músicas mais queridas do assinante e recomendações dos editores.

O algoritmo “puxa” informações de várias formas: de acordo com o gênero mais consumido pelo assinante; quantas vezes ele consumiu faixas de um artista; a relação com o artista (se é apenas um ouvinte ou um fã que segue o cantor). “Seguir o artista é o nível mais alto de engajamento”, diz Bruno Telloli, editor musical do Spotify. “Quando o assinante segue um artista no Spotify, toda vez que esse artista lançar algo, o fã receberá a informação por e-mail.”

“Ouço muita música pelo celular e acesso playlists tanto quando estou sozinho como quando recebo gente em casa”, diz o professor de educação física Lucas Buendia, de 32 anos. “Acho ótimo quando há uma mistura de gêneros. Entro bastante nas playlists de músicas mais tocadas para descobrir coisas novas.”

Buendia é um exemplo de como os ouvintes preferem não se prender a um tipo de estilo musical, e essa tendência já foi entendida pelos artistas. Nomes como Anitta, Wesley Safadão, Anavitória, Maiara & Maraisa e Alok são alguns dos que se preocupam em fazer colaborações com cantores e bandas de gêneros diferentes para, assim, conseguir entrar em diversas playlists e atingir públicos distintos. Recentemente, o funkeiro Nego do Borel uniu-se aos sertanejos Fernando & Sorocaba. Já Anitta cantou não apenas em “Sua Cara”, feito com a drag Pabllo Vittar e com os eletrônicos Major Lazer, como no sucesso “Loka”, em que aparece ao lado de Simone & Simaria.

Nascido em Goiânia em 1991, Alok Achkar Peres Petrillo é filho de um casal que criou o festival de música eletrônica Universo Paralelo. Ele começou a se interessar por música quando tinha 11 anos e iniciou a carreira como DJ e produtor de faixas feitas para as pistas de dança. Em 2015, chegou à posição número 44 na lista dos cem DJs mais populares feita pela revista britânica “DJ Mag”. Desde então, passou a se associar a artistas de sertanejo (como Matheus & Kauan) e de rock (como Mick Jagger), e sua popularidade só aumenta. Atualmente, as músicas de Alok estão em mais de 2 milhões de playlists (apenas no Spotify) feitas por pessoas de todo o planeta.

“Eu era resistente em misturar sertanejo e eletrônico. Achava que o risco de ficar ruim era grande. Mas fiz algumas tentativas e consegui fazer uma versão bacana”, diz o DJ, sobre “Villamix (Suave)”, parceria com a dupla Matheus & Kauan. Com o vocalista dos Rolling Stones, fez um remix para “Gotta Get a Grip”. Alok é dono da faixa brasileira mais ouvida por brasileiros no Spotify, “Hear Me Now”, lançada em 21 de outubro de 2016. “Até tinha pensado em fazer uma versão acústica para ela, mas no final não precisou. Ela naturalmente entrou em muitas playlists.”

“O Alok tem um canal com audiência global. Ele consegue se apresentar para públicos diferentes, com engajamento. Vai muito bem tanto com quem ouve eletrônica como com aqueles que gostam de sertanejo”, afirma Sandra Jimenez, diretora de música para a América Latina do YouTube.

Uma das músicas mais conhecidas de Alok, “Love Is a Temple”, está em diversas playlists dançantes. Mas, no fim do ano, ele vai lançar uma versão acústica, para entrar em listas “mais calmas”, feitas para serem ouvidas em casa ou para relaxar.

No início do ano, Alok enviou aos editores do Spotify três músicas. Queria que os profissionais o ajudassem a escolher a que mais tinha possibilidade de fazer sucesso nas plataformas de streaming. Escolheram “Never Let Me Go”. “Foi uma decisão acertada. ‘Never Let Me Go’ foi realmente muito bem em várias playlists”, diz o DJ.

E como saber quando uma música está indo bem em uma playlist popular? “Quando a ‘taxa de skip’ é baixa”, diz Bruno Telloli, do Spotify. “Taxa de skip” é o quanto usuários pulam a música quando ela é tocada numa playlist: se determinada música é ouvida inteira, está sendo bem recebida; se antes de essa música terminar muita gente pula para outra faixa, significa que seus dias estão contados naquela playlist.

Canções pop, funk e sertanejo estão entre as mais ouvidas pelos brasileiros nos serviços de streaming. No Spotify, entrar na playlist Esquenta Sertanejo é o objetivo a ser alcançado. Ela tem 1,9 milhão de seguidores.

Mas, para chegar à Esquenta Sertanejo, há um caminho a ser percorrido. Os editores do Spotify (são dois no Brasil) criaram outras quatro playlists do gênero, que testam a aceitação de uma faixa: Potência Sertaneja, Geração Sertaneja, Sertanejo no Trabalho e Bom Dia, Sertanejo. “Na Esquenta Sertanejo só entram músicas que estão bombando, que já foram testadas. Os artistas sabem da importância de estar dentro de uma playlist grande, e eles querem entrar na Esquenta Sertanejo. Para estourar, eles têm de ter música ali”, afirma Telloli.

As playlists feitas por gênero têm suas peculiaridades. Na Deezer, as dedicadas ao sertanejo são mais acessadas durante a manhã; as de funk são ouvidas principalmente no período da tarde. “O sertanejo corresponde a mais de 60% da nossa audiência – é a música pop do Brasil”, afirma Bruno Vieira, da Deezer. “Mas temos investido bastante no gospel. Era um mercado muito forte no formato físico, mas isso não se refletia no digital. Então criamos um projeto para nos aproximarmos desse segmento. Criamos conteúdos específicos, playlists. Hoje é o nosso segundo gênero mais popular.”

O YouTube é uma das plataformas mais acessadas do mundo. No Brasil, 98% dos internautas assistem a conteúdos do canal – é o segundo maior mercado da empresa, atrás apenas dos EUA (mais da metade conecta-se pelo celular). “E 80% do que é consumido no YouTube são baseados nas sugestões de algoritmo”, diz Sandra Jimenez. “O algoritmo aprende com a navegação do usuário, entende o que ele gosta e recomenda coisas semelhantes.”

Na página principal do YouTube, há recomendações como as YouTube Mixes, playlists baseadas em canções ou artistas que já foram ouvidos pelo usuário. “As de música latina estão sempre no Top 3 global”, diz Sandra. “Nós sugerimos aos artistas que façam playlists dentro de seus canais na plataforma. Que coloquem músicas novas e antigas, divulguem faixas desconhecidas. Assim eles conseguem aumentar o engajamento com os fãs.”

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Konrad Cunha Dantas, o KondZilla, nasceu no Guarujá (litoral de São Paulo), mas foi na zona leste da capital que ele construiu um império. Desde 2011, com equipamentos baratos e inspirado pela estética dos vídeos de rap dos EUA, ele passou a dirigir videoclipes para funkeiros como MC Guimê. Hoje seu canal no YouTube tem mais de 17 milhões de inscritos – apenas em 2017, seus vídeos tiveram mais de 6 bilhões de visualizações. Números que o fizeram ser chamado para dirigir clipes para nomes como Racionais MC’s e Karol Conka e a ser contratado pela produtora Conspiração Filmes.

Em seu canal, KondZilla faz playlists e tem uma espécie de grade de programação, com atualização constante dos vídeos que produz para artistas diversos. “Adoro playlists, faço desde 2012 para ouvir músicas que gosto. Às vezes ouço o top 50 de países latinos para saber se minha música entrou ali, e quando faço churrasco com amigos coloco no top 50 global para agradar a todos”, diz.

Os assinantes dos planos pagos das plataformas de streaming não são atingidos por qualquer tipo de publicidade. As inserções comerciais são feitas apenas dentro dos planos gratuitos. Esses serviços funcionam, assim, como um veículo de mídia. Mas não só. Muitas empresas estão utilizando YouTube, Spotify, Apple Music e Deezer para produzir conteúdo – por meio de playlists.

“As plataformas de streaming conseguem segurar o internauta por muito tempo dentro do ambiente – isso é valioso. Criar playlists especiais é uma maneira de produzir conteúdo de qualidade e, por consequência, a marca constrói um ponto de encontro com seus clientes”, diz Juli Baldi, sócia-fundadora da Bananas Music Branding, empresa especializada em conteúdo musical para marcas.

Juli dá um exemplo: “Para uma marca de chá, fizemos uma playlist com músicas para relaxar, outra com canções para revigorar a alma. Já uma empresa de sapatos quis se apropriar da música brasileira, então montamos playlists só com canções do Brasil”.

Com a influência que as playlists estão ganhando nos últimos meses, uma questão surge naturalmente: estariam elas sujeitas a influências de artistas e gravadoras? Segundo o site Techcrunch, o Spotify nos EUA está desenvolvendo um mecanismo chamado “canção patrocinada”, pelo qual gravadoras e/ou artistas poderiam investir dinheiro para que uma música fosse adicionada a uma playlist – isso apenas para os assinantes da versão gratuita do serviço.

“Se eu acho uma música boa, coloco em uma playlist. Se o público não embarcar, não tem jeito, ele vai pular a faixa, e então nós a retiramos da playlist”, afirma Yasmin Muller, da Deezer. “Muitas vezes a gravadora faz um trabalho de promoção da música. Lança clipe, faz mutirão em redes sociais. E aí a música cresce nas playlists. Temos editores humanos exatamente por isso. Confiamos no ouvido humano. As gravadoras sugerem, mas nós decidimos o que entra nas playlists.”

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